(a crônica abaixo, infelizmente, são fatos comuns hoje em dia, alguns elementos a mais fazem parte desta história, mas boa parte deles fazem parte do cotidiano de muitos outros idosos)
Seu nome é Lúcio, um homem que aos 71 anos de idade, vive sozinho em uma pequena casa no interior do Paraná. Para muitos, sua vida pode parecer simples ou até mesmo pacata. Mas, para ele, cada dia é uma batalha silenciosa contra a solidão. Durante mais de uma década, sua única companheira tem sido Sol, uma cadela, que, com seu olhar amoroso e sua presença constante, é a única luz nesta escuridão.
Dezembro chega com a sua fanfarra de luzes cintilantes e sorrisos forjados, uma estação de rádio que só toca a melodia da sua solidão. A proximidade das festas de final de ano não traz alegria; traz uma maré crescente de desânimo e uma depressão silenciosa que se senta com ele à mesa de jantar vazia. Uma onda de melancolia toma conta. É uma época em que todos parecem se reunir; os sorrisos, as luzes, os abraços calorosos. Mas ali, dentro das quatro paredes de sua casa, a realidade é bem diferente. As ruas decoradas e cheias de vida contrastam bruscamente com o vazio do seu lar. Seus familiares, que vivem longe em outro estado, nunca vêm para o visitar. Suas desculpas são sempre as mesmas: “Não posso agora; estou ocupado”, “O trânsito é terrível nessa época”, “É muito longe”. A verdade, que ele já conhece, é que não há espaço para ele na vida deles.
Desde a morte de sua mãe, sete anos atrás, sentiu como se um pano escuro tivesse sido puxado sobre sua existência. Ela era seu porto seguro, a única que o entendia sem precisar de palavras. Com a sua partida, um pedaço dele se foi, e com ele, a conexão com o resto da família. Ele só queria um toque humano, uma palavra amiga, alguém que dissesse que se importava. Mas, em vez disso, o eco do silêncio se tornou seu único familiar.
O casamento com Clara não sobreviveu ao peso das expectativas e dos sonhos desfeitos. Quando conversava com ela, sentia o abismo entre eles, maior que qualquer distância física. Ela fala com um tom sereno, mas em suas palavras há uma nota de superioridade que o fere, quase como se ele fosse um projeto inacabado em comparação aos seus sucessos. Por Lúcio não ter um diploma universitário, a seus olhos era apenas um homem que fracassou em vários aspectos da vida. Ela tem o seu diploma universitário, a sua carreira, a sua vida estruturada, e não perde a oportunidade de lhe fazer sentir a sua falta de instrução. As conversas são um exercício de paciência; ela fala sobre as conquistas e seu trabalho, e ele escuta, tentando encontrar sua voz entre as lembranças que a cercam. Em dias como esses, a saudade se mistura com um profundo desânimo. É uma dança estranha: enquanto ela compartilha sua vida, ele é um espectador, preso em polaroides de um passado que não consegue mudar. Apesar disso, se mantém conectados, a sua conexão distante com o resto do mundo. Neste momento, ela é a ponte que liga seu presente ao passado, embora ele saiba que essa ponte balança sob o peso de suas frustrações.
Sol, por outro lado, não se importa com diplomas ou conquistas. Para ela, ele é suficiente. Quando olha nos olhos dela, percebe que, apesar da dor e da solidão, é amado de uma maneira pura e verdadeira. Ela não sabe das cicatrizes que ele carrega, dos fantasmas que habitam a sombra de sua vida. Para ela, não importa se o Natal não terá presentes, árvores decoradas ou ceias fartas. O que importa é estarem juntos, no calor do seu pequeno lar, onde ele faz o melhor que pode para garantir que ela se sinta amada tanto quanto ele sente.
Refletindo sobre todos esses anos, recorda de um tempo em que também foi pai. Sua filha, Yasmin, que não viveu o suficiente para conhecer o mundo, deixou uma cicatriz que nunca se apagará. Ela foi brutalmente levada dele com apenas alguns meses de vida, O destino, porém, tinha planos cruéis. A sua menina, a sua preciosa filha, foi-lhe tirada de forma brutal, assassinada com apenas alguns meses de vida. Suas esperanças, sonhos e anseios se desfizeram em um instante, como se um vendaval tivesse passado e levado tudo que ele mais amava. A dor foi insuportável. A mãe, Najla, a mulher que ele amava, afundou na escuridão da sua própria dor. A perda dela foi o último golpe, e ela decidiu que não queria mais viver, preferindo a escuridão eterna à dor insuportável da realidade. Enquanto a via partir, entendeu que a vida era feita de uma montanha-russa de alegrias e tristezas, mas ele parecia viver só a parte mais pesada da queda, deixando-o num desespero que ainda hoje molda o seu ser. Esse capítulo da sua vida é uma ferida que nunca cicatriza, um lembrete constante da fragilidade da felicidade.
Agora, aqui está, um homem de 71 anos que vive cercado por sombras do passado. À medida que o Natal se aproxima, as memórias se tornam mais intensas: o cheiro da comida que sua mãe preparava, os cafés à tarde, as brincadeiras que ecoavam pela casa, o calor dos abraços de sua esposa. Essas lembranças são tanto o seu consolo quanto a sua condenação. O tempo não apagou a dor, ele apenas a tornou parte de quem é.
Nesta véspera de Natal, enquanto Sol se aconchega ao seu lado no sofá, sente a solidão se instalar ao seu redor. Neste momento, não tem presentes para dar. Não há árvores cheias de enfeites, nem laços coloridos. Passarão as festas juntos, no silêncio da sua casa, observando o mundo lá fora celebrar uma união que não lhes pertence. Ao invés disso, o que há é a promessa de mais um dia juntos, uma certeza que, apesar de tudo, traz um leve sorriso aos seus lábios. Ao olhar pela janela, as luzes piscantes da cidade não lhe atraem mais. Em vez de me lembrar do que perdeu, sente uma alegria ainda que transitória de estar com seu amor maior, sua cadela Sol.
Percebe que, mesmo sem a presença da família, tem Sol, sua única família presente, verdadeira, que sempre estará ao seu lado, com seu amor incondicional. Ela é a única razão pela qual ainda levanta da cama todos os dias. Ela é o seu raio de sol que lhe aquece as manhãs.
Eles, na certa, se aconchegarão em um canto do sofá, com um filme antigo na televisão e o coração esperançoso, mesmo que ligeiramente quebrado. Porque a vida, com todas as suas durezas, ainda tem seus pequenos momentos de alegria. E enquanto Sol estiver ali, ele não estará completamente sozinho.
Ah, como gostaria de viver por um momento, a festa que tanto anseia. Mas o que ele tem é uma xícara de café e a alegria simples que Sol traz para os seus dias.
Afinal, Lúcio e Sol são uma dupla imbatível, navegando em mares de solidão. E quando der meia-noite na certa ficarão deitados lado a lado como dois seres que se amam muito e esperando o sono os levar a um mundo de sonhos, de felicidade, de amor, de amizade, de espíritos livres.
No final, o que mais poderia desejar além disso? Um amor simples, uma amizade leal, e a esperança de que um dia, as sombras do passado possam dar lugar a dias mais iluminados. Para ele, isso deve ser suficiente.
===============================
os nomes foram modificados para preservar suas identidades
***********************************************************
JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor, professor e gestor cultural. Formado patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas de São Paulo. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais e oficina de trovas. Morou 40 anos na capital de São Paulo, onde nasceu, ao casar-se mudou para o Paraná, radicando-se em Maringá/PR. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a Confraria Luso-Brasileira de Trovadores (SP), Academia Rotary de Letras, Artes e Cultura (SP), Academia Movimento União Cultural (SP), Academia Virtual Brasileira de Trovadores (RJ), Confraria Brasileira de Letras (PR), Academia de Letras de Teófilo Otoni (MG), Academia de Letras Brasil-Suiça (em Berna), Casa do Poeta "Lampião de Gaz" (SP), . Possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, Voo da Gralha Azul (com trovas de trovadores vivos e falecidos). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em crônicas, contos, poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações:
Publicados: “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); “Canteiro de trovas”.
Em andamento: “Pérgola de textos”, "Chafariz de Trovas", “Caleidoscópio da Vida” (textos sobre trovas), “Asas da poesia”, "Reescrevendo o mundo: Vozes femininas e a construção de novas narrativas".
Fonte: José Feldman. Caleidoscópio da Vida. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2025.
Imagem obtida com Microsoft Bing









