sábado, 1 de novembro de 2025

Ayllin (Biba)

Buquê de Trovas à uma 
Princesa Morta 

Na aquarela desta vida
você tingiu cada flor.
Numa noite, a despedida...
louvo em versos seu amor.

Só de ternura era feito
seu coração pequenino,
de tal modo tão perfeito,
que beirava um ser divino.

Era o sol e era a garoa,
o norte e também o sul.
Era uma paz que abençoa,
era sempre um céu azul.

Era a manhã que raiava,
era o sol a iluminar,
era a noite que chegava,
era qual a brisa no ar.

Na noite, se aconchegava,
docemente junto a mim.
Um novo dia chegava...
sua ternura, o clarim.

Ayllin, Biba para os íntimos, foi um nome que chamava afeto e respondia afeto. Nasceu em Ubiratã em 25 de setembro de 2001 — sem árvores genealógicas claras, sem saber de quem eram as origens — e desde cedo deu ao mundo aquilo que poucos sabem dar sem perguntar: doçura. Era pequena de jeito e grande de ternura. Tinha um irmão chamado Bibo, e essa proximidade deu-lhe um laço que depois faria falta, quando a perda viesse.

O destino às vezes ensina suas lições com pressa. O irmão partiu cedo, com apenas dois anos, e a partida deixou um vácuo no centro dela que não se anunciava em ruídos visíveis: Ayllin recolheu-se. No começo não percebi que o isolamento não era simples timidez; era depressão, um luto que ela carregava nos pelos. Animais enlutados mostram sinais que confundimos com distância; descobri tarde demais que o corpo quieto ocultava um coração ouvindo passos que não voltavam.

Tirei-a do silêncio. Levei-a para o meu quarto, dizendo a mim mesmo que era para que ela tivesse companhia só à noite; virou-se em pergunta e resposta: ela ficou comigo sempre. Há adoções que são praticadas por mãos, outras por necessidade, e há as que se operam de alma — esta foi assim. A proximidade foi cura e ligação. Ficamos apegados de um modo que ultrapassa palavra e convenção: ela passou a dormir comigo, a exigir presença com mimos e pequenos rituais; eu passei a compreender que havia ali uma criatura inteira pedindo ser vista.

A casa, com seus labirintos e hierarquias, deu outras tramas a esse carinho. Uma das filhas de Ayllin, Cherie, tímida como a mãe às vezes ficara, também foi acolhida no quarto. E Cookie — o grande Negão, o líder do bando — que sabia ler o que os outros não diziam, começou a frequentar o quarto para apoiá-la. Formou-se assim uma assembleia de corpos que curavam feridas: a mãe apanhada pela ansiedade da perda, a filha tímida, o chefe que velava e o homem (eu) que oferecia carinho. Foram quase três anos até que Ayllin anunciasse aos poucos o retorno ao mundo: primeiro saindo pela porta, até recuperar um ritmo de saídas que antes não mais ousava.

O carinho dela tinha rituais que hoje retornam em mim com força: gostava de deitar entre as minhas pernas, ou sobre uma delas, e fazia aquele gesto ancestral dos gatos — “amassar pão”, o pisar repetido com as patinhas — como se preparasse o lugar na cama e como se conhecesse, por intuição, onde doía meu corpo. Achava sempre o músculo tenso, a coxa comprimida, e com as almofadas das patinhas massageava como quem cria alívio. É difícil descrever sem emoção a sensação de que há uma criatura que reconhece sua fragilidade física e, sem juízo, coloca o corpo para ajudar. Ela entendia onde eu precisava de cuidado e oferecia, grátis com amor, alívio.

A Biba era doce com todo o quintal e com a casa inteira. Era “mãezona” das suas três filhas — Cherie, Nikita e Corina — e do filho Nick: velava, limpava, acomodava. Algumas tardes eu encontrava a “maçaroca de gatos” no sofá — todos enroscados, formando um amontoado de respiracões e calor — e Ayllin no centro como um coração que bombeava serenidade. Em Maringá, a vizinhança de afetos se ampliou: o Branco, Cotton Candy, irmão do Cookie, tinha um carinho especial por ela, e costumavam ficar próximos. Quando o Branco morreu, foi a vez de Nikita assumí-la como referência, deitar junto com ela nas sessões de cuidado que a casa oferecia.

Os anos foram moldando um ritmo de intimidade com gestos simples: eu a pegava no colo, e quando sentava para ver televisão, ela e Nikita acomodavam-se nas minhas pernas como um único peso que me lembrava da sorte de ter quem ama por perto. Havia uma cumplicidade silenciosa entre nós — eu que dava colo e atenção, ela que retribuía com calor e paciência. Esse ir e vir de dor e cura, entretido pela rotina, alimentava uma narrativa afetiva que parecia eterna até que a velhice chegou com a dureza que todos temem.

Quando ficou idosa, a Biba mudou de ritmo: dormia muito, foi perdendo o interesse pela comida sólida, e tivemos que alimentá-la com seringa, oferecer líquidos que queriam substituir aquilo que o corpo já não pedia. Aquele cuidado é um exercício solene de entrega: medir gotas, insistir, segurar a cabeça com carinho, não desistir. Cada pequena respiração parecia uma vitória frágil. Vi nela a fragilidade consolidar-se em rotina, e senti que o tempo trazia a inevitabilidade em cada gesto dispensado ao corpo que antes foi tão ativo.

No domingo, 22 de maio de 2016, em Maringá, ela tinha pouco mais de quatorze anos. Era noite — o relógio marcava pouco mais das 23h — e eu a segurava nos braços para que adormecesse. O velho e doce corpo, que tantas vezes havia aquecido minhas perninhas e me ensinara a paz do toque, exalou o último suspiro ali, em silêncio e em mim. Há imagens que o tempo não corrige: o último ar que sai de um corpo amado, a sensação de que algo se parte num intervalo mínimo e, de repente, o mundo perde um ritmo. Entrei em choque. Chorei, e chorei por dias. A dor foi tão funda que, por um tempo, amaldiçoei Deus por tê-la levado, por tê-la permitido sofrer até o fim.

A perda de Ayllin foi como se tivessem me arrancado o coração de dentro do peito. Dizem que o tempo amansa; às vezes dói dizer que o tempo só ensina a carregar a dor de outro modo. A ausência dela deixou uma sala onde o calor costumava estar; as pernas que antes eram leito de ronrons ficaram vazias; o ritual do “amassar pão” perdeu o sentido prático e ficou apenas como memória múscular gravada em mim: o toque macio que vinha onde meu músculo doía. A Biba não foi apenas uma gata que viveu conosco — foi um ponto de referência afetivo, uma bússola de ternura que apontava sempre para o mesmo lugar: a casa, o colo, o cuidado.

Há lembranças que vêm em episódios pequenos e insistentes. O som de uma patinha no tapete que não aparece mais, a visão de dois gatos que antes se entrelaçavam na minha perna, agora ausentes, o eco do respirar felpudo que preenchia as noites de vigília. Às vezes penso naquelas tardes em que a casa parecia menor porque tantos corpos tinham partilhado calor; penso nas noites em que a Biba estava comigo e eu podia sentir, no fundo do corpo, que a companhia dela era menos um conforto e mais uma verificação de que a vida ainda era inteira.

Perdi amigos e parentes, perdi outros animais também, mas a sensação que Ayllin deixou foi de uma violência íntima: doer daquele modo é ter uma ferida que não é visível, que se instala nas coisas cotidianas. O ódio, por um instante, foi dirigido ao céu; hoje penso que foi um gesto de quem tem direito à raiva diante da justiça aparente da perda. A dor passou, mas deixou uma cicatriz que insisti em cuidar. Algumas noites, ainda sinto a ilusão de que ela está ali, entre as pernas, amassando o pão — e então percebo que é só memória e que memória, por mais doce que seja, não devolve o corpo.

A história de Ayllin é, como tantas histórias de amor que temos com animais, uma lição sobre reciprocidade e sobre o modo como nos concedemos ao outro. Ela me ensinou que a presença pode sarar sem palavra, que o silêncio pode ser um gesto de cura, que o colo é uma atitude política de resistência ao abandono. E ensinou, sobretudo, a metáfora viva de que ao cuidar, aprendemos a ser humanos. Ela era a minha xodó, e eu era o guardião do seu descanso. Quando se foi, senti que me roubavam não apenas um afeto, mas uma parte da minha rotina de dar e receber calor.

Não há consolação plena para um luto assim; há dissipações de memória que são, simultaneamente, bálsamo e faca. Resta lembrar Ayllin com gratidão: por cada noite em que me permitiu ser seu abrigo; por cada manhã em que o ronronar baixinho dela era uma canção que me dizia “estou bem”; por cada vez que suas patinhas fizeram doer minha perna para que eu percebesse onde precisava de cuidado. Resta, também, o registro do amor que não foi consumido: a mãe e as filhas que se aninharam e se protegeram, o líder do bando que soube intuir o que precisava ser feito, a casa que foi lar por causa daquele entrelaçar de corpos.

Ayllin partiu e, com ela, uma parte da minha alma se moveu. Hoje, quando olho para uma cadeira vazia ou para o espaço na cama, tenho a lembrança do seu calor e a certeza de que o amor que demos não se perde — ele se transforma em memória que nos molda. Dói e dói sempre; mas aquele dor, também, é testemunha de que vivemos algo que valeu. Se há algo que desejo dizer à Biba agora, seria sobre a gratidão: obrigado por ter confiado em mim, por ter sido meu consolo, por ter sido, sem sobra de dúvida, o xodó que eu tive e que guardo. Até sempre, Biba — e que o seu amassar de pão encontre, no além, pernas doces onde descansar.

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