Há encontros que chegam como um corte súbito numa manhã qualquer e transformam para sempre o curso de um dia, de uma casa, de uma vida. Foi numa dessas manhãs, num sábado em Taboão da Serra, que ouvi um miadinho choroso, tão baixo que mais parecia um apelo sussurrado entre o asfalto e o ar. Eu subia a rua para pegar o ônibus para o laboratório de análises clínicas, e aquele som agudo me puxou para trás. Um filhote magro, maltrapilho, escalou minha calça como se buscasse a única mão que poderia segurá-lo. Não hesitei: peguei uma caixinha, depositei nele aquele corpo minúsculo, e voltei para casa com um peso no peito — um incômodo que logo se virou cuidado.
Chegando, expliquei tudo à minha esposa. O gatinho estava tão fraquinho e tão sujo que mal dava para saber a cor do pelo. Um parente, talvez sem ver o que eu via, sugeriu que o jogássemos fora: ele estava anêmico, frágil, nada parecia prometer vida. Nós, porém, demos a nós mesmos um voto diferente. Começamos pelo básico: leite, uma limpeza demorada que parecia arrancar de suas entranhas a poeira do mundo, e uma visita ao veterinário para vacinar e checar o que podia ser feito. O diagnóstico foi simples e, ao mesmo tempo, um alívio — desnutrição. Ou fora perdido, ou abandonado; o que importava era que ali havia uma vida pedindo abrigo.
Adotá-lo foi um processo natural como respirar. Escolhemos para ele um nome que soasse grande e mítico — Gwyddion —, e ao mesmo tempo carinhoso e reduzido, Tchutchu, que era a forma como ele logo passou a ser chamado em todas as bocas da casa. Estipulamos, sem saber de fato, que nascera em 20 de novembro de 1998: um dia para marcar no calendário da nossa memória, um começo legítimo para a sua história conosco.
Tchutchu entrou nas nossas vidas feito um cometa. Apesar de termos outros gatos, ele os conquistou com uma facilidade impressionante para quem observa: olhos brilhantes, um jeitinho pidão, uma intimidade que parecia dizer “sou todo amor, recebam-me”. Dormia no meio de nós dois, preferindo muitas vezes a companhia mais da minha esposa, mas sempre repartindo também comigo o aconchego. Tinha a audácia de deitar nas minhas pernas e ir se esticando, confiando de tal modo na minha segurança que eu o levantava algumas vezes para que não caísse — e toda a cena era uma prova de que confiança também se constrói.
Com o tempo o corpo respondeu aos cuidados: tornou-se um azul e branco vistoso, com rabo grosso e peludinho. O safado se transformou em personagem de mil travessuras. Morávamos em um sobrado, e Tchutchu descobriu o mundo dos limites: um dia subiu no muro do balcão do andar superior e... caiu. Não sabíamos que ele tinha feito aquilo; só percebemos quando surgiram arranhões na porta e um miadinho, um rec-rec engraçado que denunciou o prodígio. Houve outras quedas depois — as lições nunca foram suficientes — e em uma delas o impacto bateu num cano que servia para escoar água e quebrou a ponta dos dentes caninos. Ficou com a cara ainda mais de traquinagem, como se cada falha do corpo apenas acrescentasse caráter.
Quando nos mudamos para Curitiba, Tchutchu e o Lad tomavam conta do quintal, transformando a nossa cadela numa peça perdida entre dois gatos que a divertiam com perseguições que não tinham malícia, apenas jogo. E na cozinha havia outro pequeno teatro: cozinhas precisavam ficar bem fechadas, porque o pilantra aprendeu a empurrar tampas até abri-las e a bifes com a habilidade de um malabarista. Era o nosso relações-públicas felino, sempre pronto a conquistar quem atravessasse o portão.
O frio de Curitiba teve suas provas: quando o termômetro marcava zero e a neblina enchia as manhãs, Tchutchu tinha um modo muito particular de pedir as cobertas — enfiava uma pata gelada no rosto da minha esposa. A cena repetia-se, ela odiava mas suportava, no amor qualquer sacrifício é válido, ele permanecia com uma graça que justificava o susto. Levá-lo conosco na mudança até Ubiratã foi uma epopeia: horas de estrada, sedação, um carro cheio de gatos que parecia uma orquestra de ronrons e miados. Acolhemos o novo lar achando que os corpos e as rotinas se acomodariam; mas havia uma fragilidade emocional que ninguém antevia.
Quando minha esposa teve que voltar a Curitiba por quase um mês para resolver assuntos de trabalho, Tchutchu, tão apegado a ela, entrou num recuo que parecia ancorado em depressão. Ele começou a definhar por dentro, não por falta de comida, mas por falta do afeto que antes era corrente contínua. A saudade instalou-se no peito do gato como um peso impossível de mensurar; e quanto mais o tempo arrastava, mais tênues se tornavam suas forças. Em 7 de março de 2001, com apenas dois anos e quatro meses, Tchutchu exalou o último suspiro — e foi a confirmação cruel do que já temíamos: saudade pode matar.
Perder um animal tão jovem por esse motivo é uma das provas mais duras de que amor e presença não são apenas aconchego — são sobrevivência. Chorei sua perda como se me tivessem arrancado uma fatia viva do peito. A casa ficou mais silenciosa de um jeito que dói: o lugar entre os dois onde ele costumava dormir ficou vazio, as panelas voltaram a ser seguras sem a sombra de uma pata curiosa, e as manhãs perderam aquela aliança de ronrons que fazia do nosso lar uma fortaleza contra a solidão.
Mas a memória não perde brilho. Sempre que penso em Tchutchu vejo o pequeno corpo escalando minha calça, sinto de novo o miadinho choroso que exigiu uma ação sem hesitação. Lembro-me do crescimento de seu pelo azul e branco, das artes que aprontava, das quedas que não aprenderam a ensinar prudência, das travessuras na cozinha e do jeito com que aquecia o colo nas noites frias. Vejo também o momento em que se foi, e através dessa dor compreendo uma lição dura: os animais nos escolhem para nos ensinar a amar com presença, e, quando não estamos, a ausência deles pode ser uma violência irreversível aos corações pequenos.
Tchutchu foi intensidade em pouco tempo. Foi cometa e brasa: entrou, iluminou, consumiu e deixou calor. Foi tanto afeto num corpo felpudo que parecia insuficiente para o efeito que causava. Resta a gratidão por tê-lo resgatado na rua e tê-lo mantido em casa; resta a lembrança das suas travessuras e do seu jeito de confiar. E fica também a advertência que ele deixou em vida: não subestimar o poder do afeto cotidiano, porque para muitos seres ele é ar, alimento e remédio.
Até hoje, quando passo por uma calçada e ouço um miado risonho ou choroso, penso em Tchutchu escalando minha calça, e não consigo evitar o calor no peito. Há homenagens que se fazem sem cerimônia: um gesto, uma lembrança, um olhar para o lugar vazio entre os dois. Nesse lugar, guardo o gato que apareceu num sábado, tão pequeno e pedinte, e que se tornou uma constelação na minha casa — e na minha vida.

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