domingo, 26 de outubro de 2025

Nikita

 

Há rostos que se guardam não pelo que dizem — que, no caso dos gatos, é pouco — mas pelo modo como ocupam um corpo e um espaço na nossa rotina. Nikita veio ao mundo em Ubiratã, em 17 de janeiro de 2004, junto com as irmãs Cherie e Corina, filhas de Ayllin — a Biba —, que era um tipo de mãe capaz de ensinar carinho só com o escorrer dos pelos e o gesto de lamber. Desde cedo Nikita foi desse tempo de doçura que faz a casa virar lar: peluda, em grande parte branca, com as costas tingidas de um bronze delicado e um bigodinho que a tornava uma figura ímpar — a amiga trovadora Carolina Ramos, sempre carinhosa, dizia que aquele bigode lembrava Fernando Pessoa, e havia na graça da comparação uma ternura que a descrevia bem.

Nikita era dócil com todos; tinha, ao mesmo tempo, uma preferência que era quase um santo ofício: o irmão mais novo, Nickinho. Ver os dois era um modo de entender o que significa pertencimento. Frequentemente estavam enroscados, dormindo como se um só corpo respirasse. Quando separados, um miadinho sussurrado — tão baixo, tão íntimo — vinha de Nikita chamando por ele, como se convocasse um pequeno sinal de volta ao ninho. Aquilo não era só saudade: era um ritual de pertencimento, um idioma de afeto que só quem vive perto percebe. Muitas tardes eu me via com os dois acomodados em minhas pernas — e, nesse peso quente, havia o mundo sendo restaurado a cada respiração sincronizada.

Mudanças são provas que pedem coragem. Quando nos mudamos para Maringá, Nikita veio conosco; Nickinho, porém, ficou em Ubiratã sob os cuidados de outra pessoa. Foi o primeiro grande corte. Para um gato cujo universo cabe numa vizinhança de cheiros e corpos, separar-se do irmão é como perder um norte. Quando, mudamos de cidade, Nikita reagiu como quem se refugia de tudo que a ameaça: escondeu-se debaixo de um móvel e não quis saber de sair. Deixávamos comida e água próximos, na esperança de que o tempo reabastecesse a coragem. Foram semanas de espera, de ansiedade e passos suaves, até que, um dia, ela saiu — saiu com o andar de quem foi magoada e com um miado rouco que cortava o silêncio do corredor: chamava pelo irmão com aquela voz que sempre fora um fio para trazê-lo de volta.

A depressão felina tem texturas parecidas com a humana: é quietude que pesa, retraimento que parece um sopro frio. Nikita tinha na perda do irmão uma ferida que lembrava a de sua mãe Ayllin quando esta perdeu o irmão Bibo — laços que se repetem de geração à geração, como um mapa de feridas herdadas. Nesses momentos eu a abraçava, colocava-a junto a mim, falava-lhe palavras que talvez não entendessem em sentido literal, mas que se traduzem em tom e calor: a voz acalma tanto quanto o colo. Ela não precisava compreender a gramática do afeto — foi suficiente a minha aura de calma e cuidado; isso a fez acostumar-se de novo aos passos do mundo.

A vida seguiu, e Nikita cresceu como cuidadora e receptáculo de ternura. Adotou o Branco como companheiro quando as casas e as histórias pediram novos alinhamentos; cuidou da mãe Ayllin quando a velhice bateu; esteve ao lado da Lady, do Nuhtara, do Nino. Havia nela uma inclinação natural para o zelo — não por imposição, mas por temperamento: o corpo de Nikita sabia dar calor, ajeitar um pelo, aceitar um corpo pequeno no seu colo. Ser assim não é trivial; é profissão de bondade, é escolher estar perto em vez de fugir.

Os anos passaram com a suavidade e a dureza que o tempo costuma impor. Nikita foi longe: foi a última das gatas de uma época que parecia infinita. Aos quase dezessete anos, o corpo começou a trazer sinais de cansaço: problemas que se acumularam, noites mais longas de descanso, movimentos mais lentos. A velhice chegou como um visitante que não admite negociação. No dia 26 de abril de 2021, com pouco mais de 17 anos de idade, Nikita deu o último suspiro — e fechou-se um ciclo que não cabe só em data, mas em lembranças que ocupam lacunas da casa.

Fica em mim, antes de tudo, a imagem que talvez melhor a resuma: Nikita e o Nickinho sempre juntos, entrelaçados como se o mundo inteiro coubesse naquele abraço, ou então a visão dela, já idosa, acomodada na minha perna enquanto a televisão fazia barulho e o quarto era uma ilha de calor. Fica também o modo como ela se dava com todos: sem hostilidade, sem pressa. Permanecem o bigodinho de Pessoa, o bronze nas costas, a pelagem branca e farta. E fica o aprendizado de que, às vezes, um gato nos mostra a persistência do afeto: que ele é humilhador de distância e resistente ao abandono.

A saudade é um território que reencena cenas. Às vezes, quando cruzo o corredor, espero ouvir um miadinho baixinho — esse chamamento que ela reservava ao irmão — e percebo que o quarto está mais silencioso; percebo também que as pernas sentem falta do peso dos corpos que uma vez acomodaram-se ali, o calor de seu corpinho. O corpo que nos deixa tropicaliza a memória: pequeno gesto vira prece, um ronron vira lamento e um amassar de pão vira liturgia. Nikita, com sua doçura simples e sua maneira de cuidar, deixou mais do que ausência: deixou lições sobre como se ser paciente com quem chora por dentro, sobre como o afeto pode curar pequenas mortes cotidianas.

Quando penso em Nikita, lembro de afetos simples que ensinam: a paciência da espera enquanto ela estava debaixo do móvel; o som rouco do seu chamado; o instante cálido em que, já idosa, descansava nas minhas pernas e a paz voltava. Lembro-me de que ela foi uma guardiã de laços — da mãe, das irmãs, das gatas e até mesmo da cadela —, e que, no fim, foi ela quem me ensinou, com singeleza, que o amor verdadeiro é persistente. Por isso, ao lembrar, eu sorrio com uma sombra de lágrima: porque amar é aceitar que a dor da perda faz parte do preço de ter tido alguém tão inteiro ao nosso lado.

Nikita foi doçura. Nikita foi cuidado. Nikita foi memória que se instalou em mim e que, quando vinha a noite, me lembrava que a ternura tem nomes e faces; que ela ensina, mesmo em silêncio, que sempre vale a pena servir o colo. E se há consolo, é só isso: ter tido o privilégio de ser o lugar onde ela escolheu pousar. Até sempre, Nikita — que teu bigode de Pessoa encontre agora novos versos para rimar em seus miados.

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