Morei numa cidade pequena e a vida me ensinou cedo que as pessoas mudam de endereço, de roupa, de humor — raramente, porém, de memória. Ubiratã tem um jeito de cidade que guarda nomes nas esquinas e lembranças nos muros: lá, entre ruas de terra e calçadas gastas, nasceu Baby, uma gata que parecia carregada de segredos e de pressa para ser amada.
Baby veio ao mundo em 2002, e já no começo sua vida foi uma oscilação entre portas que se abririam e portas que se fechariam. Passou por duas famílias diferentes antes de chegar até nós. Não demorou para que a palavra “agressiva” acompanhasse seu rastro como se fosse um daqueles rótulos que as pessoas colocam sem muita paciência. “Ela é agressiva”, diziam. E a solução rápida quase sempre é o afastamento: realocar, doar, procurar outro colo. Foi oferecida a nós que tínhamos várias gatas e, achando que nenhum animal é simplesmente “agressivo” por natureza, eu pedi duas semanas. Duas semanas para entender. Duas semanas para tentar. Duas semanas para que ela aprendesse que talvez havia um lugar em que não precisasse ficar na defensiva o tempo todo.
Baby era, acima de tudo, uma gata que estava só. Solidão vira casca dura; às vezes a casca corta. Sua agressividade não era munição, era defesa — defesa de um coração pequeno que nunca aprendeu a confiar. Em duas semanas ficou claro: ela não era difícil, era ferida. E as feridas aceitam remédio e cuidado, se alguém está disposto a passar a mão.
Ficou comigo quase dois anos. Quase dois anos em que aprendi o mapa de seu corpo pelo tato e em que ela me ensinou a geografia do afeto felino. Tinha um costume que me era tão íntimo quanto um segredo: deitar enrolada em meu pescoço. Dormia ali como quem se aninha em um oásis — o seu sol, o meu calor, a minha respiração como embalo. Era um ritual noturno que desmontava barreiras: enquanto apoiava seu corpo, o mundo lá fora deixava de existir. Aquela cena repetida noite após noite fez com que eu entendesse uma verdade simples e antiga: quando aceitamos o outro, o outro cede e a ferida começa a cicatrizar.
Com o calor das noites compartilhadas, Baby mostrou outra face: extremamente carinhosa comigo, terna e exigente, com um jeito único de pedir atenção. Havia entre nós pequenos códigos — um miado mais longo quando queria carinho, um empurrãozinho com a cabeça quando desejava que eu a percebesse. Mas sua generosidade afetiva tinha limites. Em casa moravam outras dez gatas, e Baby, como uma personagem que insiste em manter uma solidão escolhida, não se dava bem com elas. Não era maldade, era medo: muitas companhias, poucos entendimentos. Assim, dividimos o tempo com precisão geográfica e afetiva — tardes e noites comigo; manhãs no quintal, geralmente no muro, observando a rua.
A figura dela no muro era a imagem que mais me ficou: Baby de olho na vida que corria lá fora. Havia algo nobre naquele comportamento — não uma vontade de escapar, mas um interesse por tudo que acontecia além do quintal. Observava carros, pessoas apressadas, crianças correndo, pássaros em busca de migalhas. Era como se sua alma quisesse mapear o mundo sem precisar atravessá-lo, como se o muro fosse uma vitrine e a rua, uma novela que ela assistia com toda a atenção felina.
Os dias passaram, e dois anos preenchidos por pequenos rituais, ronronares e olhares, teceram nossa intimidade. Aprendi a distinguir os tipos de miado: o de pedido, o de indignação, o de sono. Ela, por sua vez, aprendeu a confiar, a se deixar ser pega sem tensão. Veio a época do carinho aberto, das corridas, dos saltos acrobáticos, das janelas como palcos. Às vezes dormia sobre o meu peito; outras, era dona absoluta do travesseiro. Mas nunca, por completo, abandonou seu posto no muro. De tarde, lá estava ela, recortada contra o céu do interior, uma sentinela que tomava conta de sua rua e de seus pensamentos.
E então houve um dia que mudou tudo, do tipo que a gente não consegue arquivar sem sentir um nó na garganta. 20 de agosto de 2004. Naquele meio de tarde — os detalhes tranquilos de um dia comum que, sem aviso, se tornam irreversíveis — Baby saiu para a rua. Talvez um raio de sol no asfalto, talvez um movimento que chamou sua atenção, talvez um impulso que nem sempre precisa razão. As ruas têm armadilhas para quem não sabe dos perigos humanos; carros passam com pressa, máquinas que não conversam com corações.
Um carro a atingiu. Foi instantâneo. A vida, que até então fora uma sucessão de gestos singelos e certeiros, se apagou na rua, sem dramatização, com uma crueldade que asfalto e metal impõem a seres que atravessam sem ter voz. Morreu na mesma cidade onde nascera, naquele mesmo chão que abrigara suas observações matinais. A notícia chegou com um baque abrupto, profunda, cheia de dor. Peguei-a no colo e corri para dentro de casa e coloquei-a suavemente na mesa, alucinado, acreditando que ainda havia um sopro de vida em seu corpinho frágil. Esperança vã. Ela partira para sempre.
Na casa, o espaço onde ela dormia enrolada no meu pescoço ficou vazio como uma página em branco que nunca mais se preencheria com o mesmo calor. O muro perdeu a vigilante. As tardes, sem seu olhar atento, pareceram menos densas. O peito ficou engasgado por miados que não voltariam. Mas a vida segue — e também se multiplica. Baby deixou duas filhas: Polly, nascida em 2003 e que viveu até 2011, e a irmã Lady, também nascida em 2003 e que viveu até 2015. É consolador, de uma maneira humilde, pensar que parte dela seguiu adiante, que seu jeito e qualquer traço de sua coragem e fragilidade se insinuaram nas filhas e continuaram a bordar memórias.
Lembrar de Baby é revisitar um aparelho de emoções que ensina sobre a tênue linha entre agressividade e medo, entre desconfiança e desejo de aconchego. É lembrar que o que muitos chamam de “dificuldade” muitas vezes é apenas um pedido de amor mal traduzido. É lembrar que animais não têm vocabulário das nossas justificativas, mas têm corpo, calor e rupturas que pedem mãos pacientes.
Em Ubiratã, no quintal onde ela fazia suas rondas matinais, ainda há resquícios do tempo em que uma gata se fazia senhora de seu muro. Vislumbro ali e imagino Baby acomodada, a cauda enroscada, os olhos fixos na rua de sempre. Imagino também as noites em que a casa cheirava a lençóis, ao som do meu próprio sono sendo embalado por um ronron que se tornara trilha sonora íntima. E quando penso na estrada curta da vida dela — dois anos apenas — sinto que, embora breve, houve intensidade; um desses amores que não se mede em anos, mas em precisão de presença.
Contar essa história é também um ato de resistência contra o esquecimento. Porque, para toda perda, há um trabalho de memória que faz sentido quando se tenta colocar em palavras o que foi um afeto. Baby não foi apenas “aquela gata agressiva” que alguém se apressou em rotular: foi criatura complexa, mãe, companheira de madrugada, guardiã de muro, pequena arqueóloga do mundo que buscava, com unhas e ronronares, um lugar seguro.
Fico com as imagens: Baby enrolada no meu pescoço num sono profundo; Baby no muro, moldada contra o céu azul de Ubiratã; o corpo frágil mas decidido, que buscava abrigo; e a ausência, que chegou como um carro que corta o fio da vida sem pedir licença. Fico também com as filhas, que levaram alguma coisa dela adiante, e com a ideia de que nossos afetos — mesmo quando curtos — criam consequências duradouras.
Há, por fim, um aprendizado que essa história me deu: não há pressa para julgar. Às vezes, a chamada “agressividade felina” é um pedido de colo, e aquele colo muda trajetórias. As duas semanas que pedi viraram dois anos de companhia e um modo de reinserir confiança onde antes havia apenas vigilância. Que outras mãos possam, ao encontrar um “gato difícil”, lembrar dessa lição: que o gesto de tentar pode ser a diferença entre uma vida que floresce e outra que se fecha.
Baby se foi, mas não totalmente. Vive nas noites quietas em que sinto falta do peso dela no meu pescoço; vive nas filhas que continuaram; vive na lembrança das tardes em que, juntas, observávamos a rua. E em Ubiratã, onde nasceu e morreu, há um muro que já não guarda o mesmo vigia — mas guarda a história de uma gata que, por um espaço de tempo, aprendeu a confiar e a ser amada.

Nenhum comentário:
Postar um comentário