Há nomes que, ao serem ditos, já trazem dentro de si um universo inteiro — barulhento, desarrumado, cheio de pelos e de risadas. Fluffy era um desses nomes. Nasceu em Curitiba, no dia 5 de junho de 2000, filho da Maya, a nossa Akitora que reinava com passo largo e presença inquestionável. De uma ninhada de sete, Fluffy foi o que ficou conosco. Os outros seis partiram rápido, doados com fila à porta graças à fama materna: havia história demais por trás daquele sangue branco e negro — lembravam-se todos de quando a Maya tinha pegado um ladrão no muro da casa no Pilarzinho, naquele Carnaval em que estávamos fora da cidade. A reputação da mãe abria portas.
Mas Fluffy vinha com um patrimônio próprio: a travessura de nascença. Ele era pilantra num nível quase mitológico. Tinha no sangue a curiosidade inquieta do Border Collie e no corpo a habilidade atlética que fazia dele um saltador e um planejador nato. Se havia um portão aberto, uma brecha, um pedaço de tecido ao vento, Fluffy descobria como ninguém. A casa era seu palco e o mundo, sua plateia.
Lembro bem das primeiras fugas: o portão da garagem não era obstáculo para sua perspicácia. Ele escapava com a naturalidade de quem sai para visitar um amigo, corria até o quintal vizinho — onde havia um cachorro e um gato com quem criara laços de confabulação — e voltava só quando achava adequado. Foram nessas andanças que ele contraiu parvovirose, e por quase uma semana o vimos pendular entre a vida e a morte, prisioneiro de tubos e esperas no veterinário. Era angustiante: cada hora parecia um portal entre o possível e o irremediável. Sobreviveu — e como todo sobrevivente, voltou com uma intensidade ainda maior. O gato vizinho, personagem fiel da sua história, ia todo dia até o nosso portão e chamava por ele, numa insistência comovente que fazia a gente sorrir e ficar alerta. Colocamos grades; batemos o pé; colocamos supervisão. Fluffy aprendeu? Aprendeu um pouco. Mas a regra dele era pintar o sete.
Mudamos para Ubiratã, cidade pequena a uns setenta quilômetros de Cascavel, e Fluffy trouxe com ele o mesmo espírito. Saltava o muro — um muro que para nós parecia enorme, para ele era um degrau — e ia visitar vizinhos, roubava panos de chão com destreza de quem encontra tesouro e, em dias de chuva, não perdia a oportunidade de transformar uma loucura em lambança. A vizinha lavava o fundo do quintal, ele fazia a festa; quem pagava o pato éramos nós, e a bronca vinha com a mesma regularidade das broncas. E quando retornava para casa, sua mãe e irmã mais nova não poupavam as broncas.
Havia algo de carnavalesco na vida daquele cão: a fuga que lembro com mais clareza foi a última grande aventura. Fluffy conseguiu cavar embaixo do portão da garagem e saiu para a rua acompanhado da mãe, a Maya (na época a Mel ainda não havia nascido). Um vizinho, trabalhador de uma cooperativa, nos avisou que os vira andando pela estrada em direção a Cascavel. Tomamos um táxi de um amigo e fomos até lá. Eu e minha esposa saímos do táxi e começamos a gritar os nomes deles como quem tenta afugentar o inesperado. O desespero era verdadeiro — e, como em cena ensaiada, os dois chegaram correndo como dois furacões suados e desesperados, fazendo a maior festa possível ao nos encontrar. Aquela volta, suados e confusos, era a prova máxima de que, por mais que a gente tentasse, os corações deles batiam em sintonia.
Foi tanta travessura e tanta vida que, eventualmente, tivemos de adotar medidas mais duras: colocamos uma corrente, um arame que ia dos fundos até a frente do quintal, uns 40 metros, para limitar suas viagens. Era uma prisão com vista; um espaço suficiente para ele correr, mas que anulava as expedições épicas. Mesmo assim, ali, preso, Fluffy era calor e lama, colo e farra. Era capaz de arrancar do mais sisudo de nós um sorriso com um pulo, com uma careta, com um olho que dizia: “Você sabe que vale a pena.”
E, por baixo da bagunça, havia afeto. Fluffy pulava o muro para ir brigar com os cachorros que passavam na rua, arrumava encrenca, mas se derretia em carinho. Virava a cabeça de lado como quem pede conversa, se enroscava nas pernas, apoiava o queixo como se dissesse: “Agora, por favor, me entenda.” Fazia festa quando chegávamos, usava as patas como catavento, trazia um pedaço de pano como troféu do mundo que ele governava. Foi um desses que ensinou a família a ter paciência, a rir das falhas, a não contar recriminações na mesma moeda que contava graças.
Nos últimos anos, porém, veio a tragédia silenciosa. Uma doença nas pernas começou a imobilizá-las: primeiro as dianteiras, depois as traseiras. Caminhar deixou de ser natural; o corpo, antes instrumento de travessuras, tornou-se campo de batalha contra um mal que os exames não esclareciam. Visitamos veterinários, fizemos perguntas, demos remédios, procuramos explicações que nunca vieram. A incerteza corroía tanto quanto a doença — e talvez mais. Fluffy, que havia escalado muros com a mesma naturalidade com que escalava corações, agora via sua mobilidade se esvair. Foi uma coisa sutil e cruel: a cada dia, uma parte da liberdade ia embora.
O fim foi o mais doloroso e, para mim, o mais difícil de carregar até hoje. Tivemos de tomar a decisão de sacrificar Fluffy — um ato que, apesar de sensato e compassivo diante do sofrimento, deixou feridas abertas. Viveu 10 anos, e a nossa despedida ficou marcada por uma culpa que ainda me persegue. Eu não estava ao lado dele nos últimos instantes. Por motivos que ainda me doem admitir, não acompanhei até o fim. Até hoje peço perdão a ele por essa falha. É um peso que carrego como uma sombra: prometi estarmos juntos, e falhei no compromisso definitivo.
Essa ausência me mudou. Depois de Fluffy, fiz a escolha de estar até o último suspiro com todos os que vieram depois. Quando o fim se aproxima, segurar a pata, ficar ao lado, é a última linguagem de amor que nos é permitida. Hoje, quando toca na minha memória, lembro do Fluffy correndo, do Fluffy suado vindo da estrada, do Fluffy com lama no focinho e uma expressão de arrepiante felicidade. Lembro também do Fluffy deitado, sem forças, olhos suaves pedindo apenas presença — e lembro que falhei naquele momento decisivo.
Mas a vida não se resume a um erro, por pior que ele doa. Há também uma coleção de pequenas vitórias e de humores que se acumularam: as crianças que cresceram ouvindo histórias sobre o Border Collie que não respeitava muros; os convidados que sabiam, ao entrar, que eram vigiados por um olhar astuto; as noites em que Fluffy se acomodava junto de sua mãe como um aceno de proteção. Todas essas memórias me ensinam que o amor pelos animais não é medido apenas em presenças físicas, mas em escolhas: nos passeios que fizemos, nas correntes que colocamos por segurança, nos remédios que tentamos e nas vezes que nos levantamos à noite para ver se respirava.
Fluffy deixou marcas concretas: arranhões na alma, panos manchados que viraram lembrança, vizinhos que ocasionalmente falavam dele quando a rua lembra histórias de outrora. Deixou também uma lição prática: ensinar a cuidar até o fim. Por muitos anos depois, segurei firme na promessa de não abandonar na hora derradeira. E em cada cadela e cada gata que entrou nas nossas vidas depois dele, há um pouco do Fluffy — do jeito que nos obriga a vigiar, de como nos ensinou o valor da presença contínua.
Quando penso nele agora, vejo a imagem dele saltando o muro como se fosse um gesto de liberdade absoluta; vejo a cena dele e da Maya correndo estrada abaixo e depois a alegria da chegada; vejo-o enfiando o focinho em panos limpos e fazendo um carnaval particular na lavanderia vizinha. E, por fim, vejo o Fluffy quieto, cansado, que precisava apenas de uma mão amiga. É essa memória que me corrói e que me transforma; é ela que me faz pedir perdão toda vez que penso na hora em que não estive ao seu lado.
Escrever sobre Fluffy é, portanto, aceitar o calor da lembrança e a frescura da culpa. É contar das travessuras com o mesmo afeto com que conto da dor, porque ambos pertencem ao mesmo tecido. Ele foi pilantra e leal, parceiro de aventuras e, por fim, vítima de uma doença desconhecida até então. Viveu dez anos — dez anos intensos, barulhentos e cheios de vida. E cada um desses anos foi matéria-prima para as histórias que ainda contamos.
Hoje, quando há um silêncio na casa e a rua parece vazia, eu me pego imaginando o som de seus latidos que eu ralhava com ele pelo exagero, o sopro de sua respiração, o mesmo dos velhos tempos que jamais imaginou que uma cadela e seu filho pudessem domar uma vizinhança. Fluffy foi tudo isso: coragem em forma de cachorro, pilhéria em forma de corpo, amor em forma de latido. E se há uma dívida que guardo, ela é simples e humana: o perdão que peço por não ter estado até o fim. Ainda assim, sei que de alguma maneira ele me perdoou — porque Fluffy sabia, melhor que muitos humanos, a arte de viver e de acolher, até as nossas fraquezas.
No balanço das coisas, ele me deixou menos duro e mais pronto para ficar. E se a saudade às vezes corta como navalha, ela também aquece: porque o que foi vivido com ele foi verdadeiro, e porque, na curva das lembranças, há sempre uma imagem que me cura — a do Fluffy vindo em nossa direção no breu da estrada, suado, exausto e feliz, porque no final das contas sempre escolhia sempre estar conosco.

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