ímpar em sua bravura.
Deixou na hora derradeira
um arco-íris de ternura.
Há nomes que entram na casa como quem anuncia uma história inteira; Nuhtara Dahab foi um desses nomes — um nome em árabe que eu escolhi com a mesma naturalidade com que damos apelidos aos que já nascem prontos para habitar nossas vidas. “Chuva dourada”, pensei, pela pelagem que, sob a luz, refletia um sol dourado. Veio para nós em Curitiba, era siamesa, e desde os primeiros passos — já mãe, já carregando uma promessa de filhotes — mostrou que não se acomodaria em papel de coadjuvante. Entrou, sim, para mandar.
Nasceu em 20 de outubro de 1999. Tímida, ela cruzou com o gato angorá Floco de Neve (Floquinho) que vivia conosco. Nasceu então, pouco depois de sua chegada à nossa casa, um parto difícil que nos deixou em vigília: Cookie e Cotton Candy chegaram entre sustos e cuidados. Nuhtara, que parecia pequena e delicada, mostrou ali uma força primitiva: a paciência de quem segura o mundo com uma pata e a segurança de quem sabe fabricar afeto. Mais tarde, teve a Goldie — uma filha que era a cara da mãe, “cuspida e escarrada” como quem repete traços e jeitos num gesto de fidelidade genealógica.
Ela foi mãe de muitos gestos. Havia nela uma doçura específica: carinhosa com os filhotes, vigilante, sempre atenta aos sinais de fome e de perigo. Mas o cuidado de Nuhtara ia além da sua prole: com o tempo se tornou mãe adotiva do Nino, um filhote que, abandonado e pequeno, foi acolhido por ela com um desejo quase visceral de amamentar. Já não tinha leite, mas o corpo e o coração resolveram produzir novamente; foi como se a maternidade tivesse em Nuhtara a força de um ato de fé. Ela o alimentou, abrigou e deu um lar que precisava do seu sossego.
Nuhtara cresceu e se impôs líder. Em nossa casa, que chegou a ter — mais tarde — quinze gatas, ela fez-se referência. Não governava com violência, mas com autoridade: um miado baixo e rouco, quase inaudível, bastava para restabelecer a ordem quando a algazarra crescia demais. Lembro como, nos momentos de maior confusão felina, era aquele miado — uma nota grave, carregada de realeza — que silenciava o rebanho todo. O silêncio que se seguia era absoluto, respeitoso, quase reverente. Se havia hierarquia, ela a encarnava com naturalidade: as outras queriam ficar sob as patas dela, protegidas e guiadas.
Havia em Nuhtara um gênio peculiar. Era geniosa, tinha as marcas de uma princesa que aceita afeto, mas impõe distância. Não gostava de colo — não porque fosse desligada, mas porque guardava seu afeto em medidas próprias; oferecia carinho sem se submeter, oferecia aconchego sem abdicar da autonomia. Quem cruzasse seu caminho indevidamente podia receber um aviso: rosnados, perguntas felinas, olhos que mudavam de doçura a suspeita em um segundo. Teve gente que vinha à casa com receio dela; Nuhtara respondia com postura, e a casa parecia, por dentro, um reino que ela zelava.
Era guardiã: lá fora, a cadela protegia o mundo; dentro, o domínio era dela. A casa tinha sua assinatura. Visitantes lembravam-se: “ali tem uma gata que olha de cima e decide se você merece carinho.” Era engraçado e impressionante ao mesmo tempo. Ela tinha essa aura de autoridade que não se impunha com gritos, mas com presença.
Houve episódios que ficaram como pequenas epopeias domésticas. Em Ubiratã, lembro de um dia em que ela, numa das suas passagens curiosas pelo quintal, subiu numa calha do telhado e entalou-se ali. O som que vinha era um miado muito baixo, angustiado — e era do telhado, indecifrável. Subi a escada e a vi, presa naquela calha estreita, olhos miúdos pedindo ajuda. Foi preciso tirar a calha para libertá-la; o gesto simples — de mãos sujas e coração apertado — ficou marcado: Nuhtara, imponente na vida cotidiana, também aceitava ser salva. Era cena curiosa porque ela, que era tão comportada em muitos momentos, ousara uma aventura que terminou com a a paciência nossa para salva-la.
Ao longo dos anos, ela acumulou títulos: mãe corajosa, líder dos gatos, guardiã mascarada. Era espécie de mãe de confianças felinas, e sua presença tinha textura — o roçar discreto das patas, o ronronar raríssimo, os olhos que mediam e compunham princípios. Não era exigente, mas demandava respeito; não fazia exigências, fazia presença. Quando simpatizava, era ternura; quando não, era prontidão: ai de quem a enfrentasse.
O declínio começou só nos últimos anos, como se o tempo fosse tirando o vigor dela com uma paciência meticulosa. Aos 16 anos, Nuhtara começou a definhar. Aquilo que antes era autonomia e altivez transformou-se em fragilidade. Tive de lhe dar comida na boca; seus passos ficaram mais curtos, os saltos mais raros. Mas havia uma cena que me acompanhou como lição: Nikita, uma gata que não era filha biológica, filha da Ayllin, assumiu o cuidado com ela. Nikita que, em hierarquias, poderia ter sido desqualificada, mostrou-se cuidadora de verdade; algo de comunidade ficou claro: a casa, povoada por gatos com histórias, cuidava dos seus. Nuhtara, mesmo quando fraca, tinha ao redor a gentileza de quem reconhece quem deu tudo.
Faleceu em Maringá no dia 16 de março de 2016, quase 17 anos depois de seu nascimento. “Vaso ruim não quebra”, dizem, com um sorriso que mistura ironia e ternura; nela, a sentença foi verdadeira: viveu longa, cheia de acertos e recuos, com a marca de uma vida que soube impor limites e distribuir afeição. Quando se foi, deixou um silêncio — não o silêncio respeitador de seus miados, mas o vazio contundente de um lugar que já não se preenche de jeito nenhum. A casa perdeu uma cor, uma cadência, uma escala própria de autoridade felina.
Sinto falta do miado baixo que vinha como metrônomo nas manhãs mais confusas; da maneira como ela deslizava pelos cantos como uma pantera, sempre com a expressão de quem pensa e decide; da sua recusa em ser pega no colo e, ao mesmo tempo, da generosidade com que permitia que pousássemos a mão em seu dorso quando ela consentia. Sinto falta do gesto de mãe que adoçou estranhos — como quando passou a fazer leite para Nino e o alimentou; não por obrigação, mas por uma inclinação que beirou o milagre.
Houve medo em quem veio à nossa casa, respeito em quem a conheceu. Havia também agradecimento, porque numa casa barulhenta, cheia de outras gatas e da vida que os animais imprimem, Nuhtara era a linha que organizava o caos. Era triste ver a cor diminuir; era consolador saber que ela partia tendo sido inteira até o fim — inteira em sua altivez, inteira em sua capacidade de ser mãe e guardiã.
Escrever sobre ela é tentar juntar as pontas de uma vida que foi feita de pequenos reinados. Nuhtara Dahab não foi apenas uma gata siamesa que viveu quase 17 anos; foi uma lição sobre como ser presença: sem exigência, com autoridade; sem abrir mão do afeto, com a condição de que ele fosse oferecido nos termos dela. Ficou o legado — a lembrança dos miados baixos que calavam a casa inteira, a história da catástrofe da calha e do resgate, os contos de suas maternidades e adoções, e a imagem do olhar dela, sempre questionando, sempre avaliando.
Quando fecho os olhos, lembro-a deslizando pela sala, o dorso comprido brilhando, e imagino-a em algum lugar onde reina do jeito que gostava: altiva, com as patas em posição de esfinge, purificando o meio ambiente, decidindo quem merece um afago. E se há saudade, ela vem misturada com respeito: porque Nuhtara ensinou que, numa família numerosa de vozes, é possível haver um silêncio que organiza. Que seja esse silêncio — e essa lembrança — a graça que me toca quando penso nela.

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