segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Cotton Candy (Branco)


Há nomes que entram na vida como quem anuncia um cheiro doce, leve, impossível de confundir. Cotton Candy — ou simplesmente Branco, como o chamávamos — tinha esse nome e esse cheiro de memória. Nasceu em Curitiba, no dia 10 de outubro de 2000, filho de Nuhtara Dahab, irmão do Negão (Cookie). Veio ao mundo num parto difícil, estava de costas, uma veterinária foi nos orientando para fazer o procedimento: precisou ser puxado de dentro da mãe pela cauda, um gesto áspero de desespero que deixou marcas. Parte do rabo quebrou; depois, com o tempo, cresceu de novo, e o mundo parecia ter devolvido a ele um rabo grande, como se a vida quisesse compensar a violência do nascimento com uma promessa de abundância.

Cotton Candy era, antes de tudo, um sedentário por vocação. Não era feito para correr atrás de borboletas ou escalar alturas com frenesi. Ele tinha o dom — raro e comovente — de saber que a vida inteira cabe num cochilo bem dado. Passava as horas dobrado numa nuvem de pelos, olhos semiabertos, gozando de uma paz que parecia estudada. Se havia disputa na casa, ele não tomava partido; se havia briga, ele escolhia não participar. Havia, nele, uma elegância de quem prefere observar o mundo como um espectador confortável ao invés de um ator barulhento.

Mesmo acomodado, Branco nunca foi problema para ninguém. Não procurava confusão; não era de arrumar encrenca. Isso o tornava, entre tantos irmãos e tantos gatos, uma espécie de neutralidade felina: um ponto de paz no borbulhar cotidiano. Às vezes a gente ria, porque dava para ver que ele gostava mesmo era de ser carinho ambulante — e quando vinham visitas, havia sempre a mesma surpresa: “Mas esse é de pelúcia?”, alguém perguntava, encantado pela pelagem branca, farta e macia. Ele aceitou os afagos como quem aceita a vida: com naturalidade e sem pressa.

Apesar dessa disposição para o sossego, havia um grupo de companhia que acompanhou sua vida nos anos seguintes: quando nos mudamos para Maringá, Branco assumiu um papel que surpreendia pela ternura. Ele cuidou da Nikita — que estava abalada pela perda do irmão Nick — e se aproximou da mãe dela, a Biba (Ayllin). A tríade Branco–Nikita–Biba virou rotina de afeto: eles apareciam juntos, como quem formaliza um pacto de proteção. Nikita buscava em Branco uma segurança de que precisava depois da dor; Branco, por sua vez, parecia entender essa necessidade sem esforço. Brincavam no meu quarto; muitas vezes eu encontrava os dois enrolados, como se Branco concordasse com o mundo desde que a paz fosse preservada.

Branco tinha uma história de corpo que marcava sua presença. Havia uma bola na cabeça — um tumor que se assentava ali, uma mancha de anatomia que o pediatra felino disse não valer a pena remover. Segundo ele, o tumor cresceria novamente se retirado, e se não incomodava o gato e não lhe causava dor, o melhor caminho era deixá-lo. E assim Branco seguiu com sua bola — uma protuberância silenciosa que, de certo modo, o tornou ainda mais singular. Era parte dele, como uma cicatriz que lembra de batalhas vencidas. Nunca reclamou, nunca pareceu sofrer por causa dela; estava lá, uma marca constante que nos lembrava que o corpo pode carregar estranhezas sem perder a serenidade.

A vida de Branco era um ritmo próprio: comer, dormir, receber um afago, dormir de novo. Era um especialista no ofício do descanso. Havia uma paz que se espalhava quando ele se deitava; a casa tinha um ponto de calma quando o Branco repousava. Mas o tempo não perdoa. Aos quase 15 anos, a enfermidade veio como uma sentença gradual e invisível: falência dos órgãos, algo que não se anuncia com barulho até que o corpo, lânguido, começa a falhar. Foi assim que ele nos deixou, em 9 de março de 2015, em Maringá — deixando um vazio de pelagem branca. Era como se um objeto feito de algodão tivesse sido arrancado do móvel onde habitava; a textura do lar mudou.

A morte de Branco chegou sem grande espetáculo; era o término natural de um corpo que vivera com moderação. Mas a ausência que ficou foi profunda. Para quem conviveu com tantos temperamentos felinos — com a autoridade da Nuhtara, a energia do Cookie, a agitação de outros tantos — Branco representava um remanso. Quando ele se foi, a casa perdeu uma cama aquecida, uma almofada ambulante e uma espécie de mediador silencioso. Perdeu também a lembrança de um cuidado simples: a maneira como ele, apenas sendo, aceitava acolher a vulnerabilidade dos outros, como naquelas tardes em que a Nikita lhe buscava proximidade após perdas.

Há memórias que se fixam em pequenos gestos: a forma como ele se espreguiçava ao sol; a forma do corpo ficando na almofada onde dormia; a bola discreta que moldava seu perfil; o rabo que se recuperou do parto difícil, ondulando longo e generoso. E havia, sempre, a impressão de que ele fazia um trabalho íntimo e essencial: ensinar que a presença calma pode ser um cuidado tão forte quanto a coragem dos que ousam enfrentar o mundo. Branco provava que a neutralidade não é frieza; é, sim, escolha de quem quer preservar harmonia.

Quando penso nele, o que vem primeiro não é a forma do rabo ou a protuberância na cabeça, mas a sensação do toque — da pelagem macia entre os dedos e da tranquilidade que ele transmitia. Era como se, naquela carcaça branca e tranquila, o mundo encontrasse um pequeno remanso. E é esse remanso que sinto falta: o calor imóvel que acalmava os passos da casa, a fidelidade sem exigência, a presença que dizia mais em silêncio do que em miados.

Cotton Candy viveu quase quinze anos. A sua história — do obstáculo no nascimento até a calmaria final — é uma lição sobre modos de estar no mundo. Não era um gato de grandes feitos; era, porém, um soberano dentro de suas limitações. Deixou-nos a prova de que existir de forma suave pode ser, por si só, um gesto de coragem. E quando ecoa a lembrança dele em nossa casa, o que fica é um espaço mais tranquilo, como se a ausência dele tivesse trazido a lembrança de um abraço: de pelagem, de calor e de uma paciência que só alguns seres pequenos carregam consigo.

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