domingo, 2 de novembro de 2025

Nick


 Há animais cujo lugar no mundo é tão certo quanto a gravidade: não é preciso entender como se dá o milagre, basta vê-los existir e todo o resto se rearranja para fazer sentido. Nick nasceu em Ubiratã em 15 de novembro de 2003, fruto do encontro entre a Biba — Ayllin, mãe amorosa — e o Branco (Cotton Candy), que também tinha no gesto o carinho fácil. Do par saiu apenas um filhote, como se a sorte tivesse decidido concentrar uma história inteira num só corpo felpudo. Era pequeno e era urgente: um pedaço de ternura pronto para incendiar a casa.

Logo cedo ficou evidente que, apesar do amor de mãe e do afeto do pai, Nick corria o risco de se sentir sozinho. O Branco e a Biba davam o colo e amor, mas brincar é coisa que multiplica quando há pares, e para um filhote a presença de um outro companheiro é escola e porto. Aos três meses, pensando nisso, levei-o para junto do Nino — que tinha só dois meses a mais e sem lar fixo, a Nuhtara o acolhera —, pedindo à Nuhtara que o aceitasse como parceiro de traquinagens. Nuhtara acolheu, e o duo encontrou uma vida compartilhada: Nick parou de procurar e começou a habitar. Dormia com a mãe, brincava com o Nino, e a casa começou a ter outro compasso, um compasso de patas e de disputa por atenção.

Niquinho, como o chamávamos com um antegozo de afeto, era dupla natureza: doce e, ao mesmo tempo, um encrenqueiro de marca maior. Se uma briga entre gatos surgia, era quase certo que Nick estaria no centro. Não por maldade — muitas vezes por uma curiosidade maluca, pela coragem de testar limites ou só por gostar de provocar. A casa era um palco e ele, um ator que gostava de roubar cenas. Quatro meses mais tarde nasceram três gatas, filhas da Biba com o Negão (Cookie), e o pequeno então passou a conviver mais ainda com as irmãs: era comum ver o sofá tomado por um balaio de gatas, um amontoado de corpos, e o Nick no meio, aninhado como se fosse sempre a melhor posição do mundo.

A castração veio como tentativa de alívio às inquietações: esperávamos que, como em muitos gatos, a cirurgia temperasse a cabeça. O procedimento teve uma complicação — a veterinária conseguiu apenas uma castração parcial porque um dos testículos não foi encontrado, pequeno demais para ser localizado. Pensamos que mesmo assim ele se acalmaria; não foi o caso. Continuou aprontando, às vezes até no colo de quem o abraçava. Lembro-me de uma transgressão que aconteceu algo grave o suficiente para que eu o prendesse numa corrente numa casinha no banheiro, para que pudesse usar a bandeja; coloquei comida e água, e ali o deixei choroso. As irmãs, fiéis, iam até lá e se encolhiam junto com ele, transformando a solidão numa reunião de lealdades. Aquela tarde me apertou o peito; senti culpa e compaixão ao mesmo tempo, e acabei soltando-o. Sua prisão tinha sido um erro que me lembrou de como somos falhos e de como amar também é corrigir a si mesmo.

Mesmo depois disso, o Nick continuou suas artes: olhos azuis que encantavam quem visitava, um olhar que prendia e hipnotizava; um corpo pequeno e, às vezes, doentinho. Sofria com um problema respiratório que se agravava no frio, e por isso os cuidados eram redobrados quando as noites ficavam mais ásperas. Ainda assim, era presença constante no colo — à noite era costume tê-lo e às meninas aconchegados em nossas pernas, uma mancha de calor e conforto. A Nikita, sua irmã, estava sempre ao lado; os dois eram quase inseparáveis, e a imagem deles lado a lado é uma das que mais me acompanha quando penso nos dias de casa cheia.

O Nick tinha, enfim, a mistura rara de teimosia e vulnerabilidade: um pequeno briguento com ar de conspirador e o corpo que pedia mimos contínuos. Era querido com uma intensidade que se dava nas pequenas coisas — um arranhar leve para pedir a atenção, um salto mal calculado que virava riso, a maneira como aceitou ser amado mesmo quando aprontava. Era sentimento que se distribuía sem economia, e por isso o calor que restou depois de sua ausência não é só saudade, é também um registro do quanto ele foi importante para as rotinas, para os lares daqueles que o receberam.

Quando nos mudamos para Maringá, não foi possível levar todos; uma conhecida ofereceu-se para cuidar dele. Na época, Nick tinha oito anos e cinco meses. Depois disso, as notícias deixaram de chegar. Sei que sua saúde sempre fora frágil, e a incerteza sobre seus últimos dias pesa em mim como perguntas sem fim. Não sei quanto mais viveu — talvez pouco, talvez o suficiente. A possibilidade de que a fragilidade tenha ditado um fim breve é algo que me acompanha com um nó no peito; ainda assim, prefiro imaginar que, mesmo sob cuidados alheios, ele teve alguém que gostasse dele, que enxugasse seu miado e oferecesse um colo quando o frio raspava as frestas do corpo.

O que fica, ao fim, é a imagem do garotinho que dividia o sofá com um bando de meninas peludas, o filhote de olhos azuis sempre pronto para arranjar confusão; a cena do colo noturno onde ele e as meninas se aninhavam; a lembrança da cirurgia imperfeita e do erro meu de afligi-lo quando a impaciência falou mais alto. Fica também a certeza de que amamos, durante todos aqueles anos, um ser que nos devolveu amor em plena intensidade — nas travessuras, nas noites de doença, nas manhãs de afago.

Há um tipo de saudade que é presença: ela aparece como imagem, som e cheiro — o sopro do Nick, o silêncio entre as gatas, o vazio no canto preferido do sofá. Às vezes penso na Nikita, que tanto gostava dele, e imagino os dois juntos novamente, em algum lugar onde brigas não deixam marcas e a respiração se faz suave. Se a vida nos deu a sorte de compartilhar um pedaço dela com o Nick, então o preço que pagamos em apreensão e em perda é, de algum modo, o tributo de quem amou.  

Até sempre, Niquinho — pequeno grande encrenqueiro de olhos azuis. Que onde quer que estejas, haja alguém para amar-te e umas tantas travessuras para recontar.

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