segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Mais um adeus

 Texto construído tendo por base a trova de Eliana Palma (Maringá/PR)


Adeus com dores combina,
adeus inspira piedade.
Adeus de amor, triste sina
de quem vive de saudade!

O sol estava se pondo em Maringá, tingindo o céu de laranja e rosa, como se o próprio dia estivesse se despindo para dar lugar à noite. As ruas começavam a se esvaziar, e o movimento frenético do centro da cidade diminuía, dando espaço a um silêncio que parecia carregar a melancolia de tantos “adeus” que haviam sido ditos ao longo dos anos. Em cada esquina, um pedaço de história, um resquício de amor ou amizade, ecoava na memória dos que por ali passavam.

Naquela tarde, Maria, uma jovem de cabelos cacheados e olhos brilhantes, caminhava pela Avenida XV de Novembro. Seu coração pulsava descompassado. Ela sabia que estava prestes a se despedir de Humberto, seu primeiro amor, que decidira se mudar para outra cidade em busca de novas oportunidades. O anúncio da partida havia caído sobre ela como uma tempestade de verão: repentino e avassalador.

"Quando você vai embora mesmo?", ela perguntou, tentando esconder a tristeza na voz. Humberto, com um sorriso nostálgico, respondeu que partiria na manhã seguinte. O que era uma nova chance para ele, tornava-se um abismo para ela. O amor, que havia sido uma doce melodia, agora era um lamento que ecoava pelas ruas de Maringá.

Enquanto Maria caminhava, lembranças dançavam em sua mente. O primeiro encontro no Parque do Ingá, com suas árvores majestosas e o perfume das flores. As tardes passadas em um banco à sombra, onde eles trocavam promessas e risadas, como se o mundo ao redor não existisse. E agora, todas aquelas memórias pareciam pesadas, como se cada risada carregasse um peso insuportável.

O "adeus" que se aproximava era uma verdadeira sina. Maria sentia o coração apertar ao pensar nas despedidas que já havia vivido — a partida do pai para o exterior, a saída da melhor amiga que se mudara para a capital, as idas e vindas da vida. Cada adeus trazia consigo um rastro de saudade, e ela se perguntava se um dia aprenderia a lidar com isso.

Na esquina da Avenida XV com a Avenida São Paulo, um grupo de amigos se despedia. Riam e se abraçavam, mas Maria percebia que, por trás das risadas, havia um fundo de tristeza. O “adeus” sempre vinha acompanhado de uma sombra. "Adeus com dores combina, adeus inspira piedade", pensou. As despedidas em Maringá eram como melodias que se repetiam, sempre com a mesma harmonia triste.

Com o coração pesado, ela decidiu encontrar Humberto uma última vez. Dirigiu-se ao café onde costumavam ir, um pequeno lugar aconchegante, com mesas de madeira e um cheiro inconfundível de café fresco. Ao entrar, avistou Humberto na mesa do canto, olhando pela janela. Ele parecia distante, perdido em pensamentos, e Maria percebeu que ele também estava sentindo o peso da partida.

— Oi, você veio! — Ele sorriu, mas a alegria não alcançou seus olhos.

— Precisamos conversar — disse Maria, sentando-se à sua frente. 

O clima estava carregado, e as palavras pareciam não querer sair. O garçom trouxe os pedidos, mas o café esfriou enquanto eles trocavam olhares que falavam mais do que mil palavras.

— Eu não sei como vou lidar com isso — ela finalmente desabafou. — Vai ser tão difícil te ver partir.

— Eu também não sei, Maria. É como se estivéssemos vivendo um sonho e agora temos que acordar. — ele hesitou. — Mas isso não significa que o que tivemos não foi real.

A conversa fluiu entre risos nervosos, lembranças e promessas de que tudo ficaria bem. Mas, no fundo, ambos sabiam que a vida os levaria por caminhos diferentes. O café esvaziou-se em suas xícaras enquanto as horas passavam, e o sol começava a se esconder, deixando uma sombra sobre a cidade.

Quando finalmente se levantaram para sair, Maria sentiu que aquele momento se tornaria mais uma memória, mais um “adeus” a ser guardado na caixa de saudades. Eles caminharam lado a lado, sem saber se deveriam se abraçar ou apenas se despedir com um aceno. O medo da dor os impedia de se aproximar.

Na porta do café, Humberto parou e, em um gesto inesperado, puxou Maria para perto. O abraço foi apertado, cheio de sentimentos não ditos. Era um “adeus” que transbordava dor, mas também gratidão. Um “adeus” que, mesmo triste, celebrava o que haviam vivido juntos.

— Adeus, Maria. Cuide-se! — ele disse, com a voz embargada.

— Adeus. E não se esqueça de mim — respondeu ela, enquanto as lágrimas escorriam pelo rosto. 

O “adeus” ecoou, pesado e doce como um canto de despedida, deixando no ar a promessa de que, apesar da distância, as memórias permaneceriam.

Enquanto ele se afastava, Maria ficou ali, observando o homem que um dia fora seu amor. O céu estava agora escuro, e as luzes da cidade começavam a brilhar. Em cada ponto luminoso, ela via uma lembrança, uma risada, um abraço.

E, assim, em Maringá, onde os adeus são sempre acompanhados de saudade, Maria aprendeu que a vida segue, mesmo entre dores e despedidas. O amor se transforma, mas nunca desaparece completamente. E, ao final, cada “adeus” traz consigo a semente de um novo “olá”, mesmo que, por ora, a saudade seja a única companhia.
Fontes:
 José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat.Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

domingo, 26 de janeiro de 2025

Fábula do burro, do cavalo, do cão, da vaca e do homem

Havia um tempo em que os animais falavam entre si e com os homens.

Era uma vez, em uma pequena fazenda, um burro chamado Tobias, que era conhecido por sua força, mas também por sua falta de esperteza. Ele trabalhava duro, carregando sacos de ração e ajudando no transporte de mercadorias. No entanto, seus amigos, um cavalo chamado Estrela, um cão chamado Rex e uma vaca chamada Margarida, sempre riam de suas confusões.

Um dia, o dono da fazenda, Paulo, decidiu organizar uma competição para ver quem era o mais útil entre os animais. 

“Vou premiar o que me ajudar mais”, disse ele, com um sorriso no rosto. 

Todos os animais ficaram animados com a ideia, exceto o burro Tobias, que já tinha uma ideia de que as coisas poderiam não sair bem para ele.

Na manhã da competição, Estrela, o cavalo, começou a correr em círculos, puxando um carro cheio de fardos. “Olhem como sou rápido e forte!” exclamou ele, enquanto todos o aplaudiam. 

Rex, o cão, decidiu mostrar sua agilidade. Ele correu atrás de uma bola que o Paulo lançou, pegando-a rapidamente e trazendo-a de volta. “Eu sou o melhor amigo do homem!” latia Rex, orgulhoso.

Margarida, a vaca, por sua vez, decidiu impressionar o homem com seu leite fresco. Ela se posicionou ao lado do balde e, com um movimento elegante, produziu um litro do melhor leite da região. “Olhem, eu sou essencial para a alimentação!”, disse ela, enquanto todos a elogiavam.

Tobias, o burro, observava seus amigos com um olhar triste. “O que eu posso fazer para ajudar o Sr. Paulo?”, pensou ele. 

De repente, uma ideia lhe ocorreu. Ele se aproximou do homem e disse: “Posso carregar todos os fardos que você precisar, senhor!”

Paulo, surpreso com a oferta, aceitou. O burro Tobias começou a carregar os fardos, mas logo se distraiu com uma borboleta colorida que passou voando. Ele começou a persegui-la, esquecendo completamente do que estava fazendo. Os fardos começaram a cair e a bagunçar o lugar. 

O homem, irritado, gritou: “Tobias, você é o burro mais burro que conheço! Olhe o que está fazendo!”

Os outros animais riram e zombaram de Tobias. 

“Viu? O burro não serve para nada!”, disse o cavalo Estrela. 

“Nem para carregar fardos direito!”, completou o cão Rex. 

A vaca Margarida, mesmo rindo, sentiu um pouco de pena do amigo.

No entanto, enquanto os animais se divertiam, Paulo começou a perceber que, apesar de sua força, ele mesmo estava cometendo um erro. Ao se distrair com a confusão dos animais, ele deixou o portão da fazenda aberto. Um grupo de ovelhas decidiu aproveitar a oportunidade e saiu correndo pelo campo.

Quando o homem percebeu o que havia acontecido, ficou desesperado. 

“Minhas ovelhas! Voltem aqui!”, gritou ele, correndo atrás delas. 

Tobias, o burro, vendo o caos, teve uma ideia. Ele se apressou e começou a conduzir as ovelhas de volta para a fazenda, usando sua força e agilidade. Com determinação, conseguiu reunir todas as ovelhas e guiá-las de volta.

Quando o homem viu o que Tobias havia feito, ficou em choque. 

“Eu estava tão preocupado em avaliar a utilidade dos outros que não percebi que o verdadeiro burro aqui sou eu!”, disse Paulo, envergonhado. “Tobias, você é mais sábio do que pensei! Obrigado por me salvar!”

Os outros animais, que antes riam de Tobias, agora o viam com respeito. 

“Às vezes, a força não é tudo. A sabedoria pode vir de onde menos se espera”, refletiu Margarida, a vaca.

Moral da Fábula:
A verdadeira sabedoria e utilidade não estão apenas na aparência ou nas habilidades, mas também na humildade e na capacidade de agir em momentos de necessidade.
Fontes: 
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR:Plat  Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

sábado, 25 de janeiro de 2025

O coração sonhador

 Texto construído tendo por base a trova de Therezinha Dieguez Brisolla (São Paulo/SP)

Envergonhado e sem jeito,
meu coração sonhador
conserta o ninho desfeito
enquanto espera outro amor!

Em uma pequena cidade à beira do mar, onde as ondas sussurravam segredos e o sol se despedia em cores vibrantes, vivia um jovem chamado Rafael. Ele era conhecido por seu espírito sonhador e sua sensibilidade à flor da pele. Com seus cabelos bagunçados e um olhar que carregava a luz do horizonte, Rafael caminhava pelas ruas da cidade com um caderno sempre à mão, onde anotava pensamentos, poesias e fragmentos de suas esperanças.

Ele acreditava no amor como algo mágico, um laço que transcende a lógica e as barreiras do cotidiano. Desde pequeno, ele sonhara em encontrar sua alma gêmea, aquela pessoa que faria seu coração bater mais forte e transformaria sua vida em uma aventura. Porém, a realidade o havia ensinado que os amores nem sempre são eternos. Recentemente, ele havia passado por um término doloroso com Lúcia, uma jovem que iluminou sua vida como poucos. A separação foi abrupta, deixando um ninho desfeito em seu coração, repleto de memórias e promessas não cumpridas.

Sentado em seu quarto, cercado por livros e poemas, Rafael sentia-se envergonhado e sem jeito. A dor da perda ainda pulsava em seu peito, mas, ao mesmo tempo, havia uma chama de esperança que se recusava a se apagar. Ele sabia que precisava consertar o ninho que havia se desfeito, não apenas para curar suas feridas, mas também para se abrir a novas possibilidades. O amor poderia ser um ciclo, e ele estava determinado a não deixar que o medo do fracasso o impedisse de voar novamente.

Os dias passaram, e ele começou a se dedicar a si mesmo, a recuperar o que havia se perdido na relação anterior. Ele se permitiu sentir a dor, mas também se permitiu sonhar. Começou a frequentar uma nova cafeteria na cidade, um lugar aconchegante e repleto de pessoas criativas. Ali, entre risos e conversas, ele começou a se abrir para o mundo. O cheiro do café fresco e o som das xícaras se chocando criavam um ambiente acolhedor, onde ele podia se perder em pensamentos e anotações.

Em uma dessas manhãs ensolaradas, enquanto rabiscava algumas linhas de poesia, uma jovem entrou na cafeteria. Seu nome era Ana, e sua presença iluminou o ambiente. Ela tinha um sorriso contagiante e um olhar curioso, que imediatamente capturou a atenção de Rafael. Eles começaram a conversar, e, a cada trocadilho e risada, ele sentia seu coração despertar lentamente. Era como se ele estivesse consertando seu ninho desfeito, colocando de volta cada pedaço que havia se espalhado com a dor da separação.

Ana e Rafael começaram a se encontrar regularmente, trocando histórias sobre suas vidas, sonhos e desejos. A conexão entre eles cresceu de maneira orgânica, como uma planta que se adapta ao ambiente. Rafael se sentia mais vivo e mais inspirado do que nunca. Ele redescobriu a alegria de escrever, agora fluindo com versos que falavam sobre recomeços e a beleza de se abrir novamente para o amor.

No entanto, mesmo com a felicidade renascente, Rafael não conseguia esquecer completamente Lúcia. A saudade ainda o acompanhava em momentos de solidão, e ele se perguntava se estava sendo justo com Ana ao permitir que essa sombra ainda existisse em seu coração. Era um dilema que o deixava angustiado: como poderia amar plenamente outra pessoa se ainda havia espaços ocupados por memórias passadas?

Uma noite, enquanto caminhava pela praia com Ana, Rafael decidiu que era hora de ser honesto. Com o som das ondas como pano de fundo, ele compartilhou suas inseguranças. “Ana, eu estou tão feliz por estar aqui com você, mas preciso te contar que ainda sinto a falta de minha ex. É um sentimento que não sei como lidar, e temo que isso possa afetar o que estamos construindo juntos.” 

A brisa do mar trouxe um silêncio momentâneo, e Rafael sentiu seu coração apertar.

Ana olhou para ele com compreensão: “Rafael, é normal carregar algumas bagagens, mas o que importa é o que decidimos fazer com elas. O amor não é uma competição; é um espaço onde podemos crescer juntos. Se você está disposto a abrir seu coração para mim, estarei aqui, ao seu lado.” 

Suas palavras foram como um bálsamo para as feridas de Rafael. Ele percebeu que, embora as sombras do passado ainda estivessem presentes, a luz do novo amor poderia iluminá-las.

Com o passar do tempo, Rafael aprendeu a equilibrar seus sentimentos. Ele não precisava apagar Lúcia de sua memória, mas poderia permitir que Ana ocupasse um lugar especial em seu coração. A cada encontro, a cada conversa, seu ninho se tornava mais forte, mais acolhedor. Rafael dedicou-se a construir uma nova história, onde o amor não era uma substituição, mas uma continuidade.

O que começou como uma angústia se transformou em um aprendizado profundo sobre amor, perda e renovação. Rafael percebeu que a vida é feita de ciclos, e cada amor traz suas lições. Ele aprendeu a olhar para suas experiências não como fardos, mas como parte da bela tapeçaria que compõe sua existência.

E assim, enquanto o sol se desvanecia no ocaso em mais um dia, ele sentiu seu coração sonhador pulsar com uma nova esperança. Sabia que estava em um caminho de cura, e que, enquanto consertava seu ninho desfeito, estava também se preparando para voar mais alto. Afinal, o amor verdadeiro não se apaga; ele se transforma, se adapta e, na maioria das vezes, nos ensina a amar de uma maneira ainda mais profunda.

Fontes: 
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Estrepolias de um insone

Era uma vez, em uma cidade não muito longe daqui, um sujeito chamado Tico. Ele era conhecido por uma peculiaridade: ele não conseguia dormir. Enquanto a maioria das pessoas se entregava aos braços de Morfeu, ele passava as noites em claro, contando carneirinhos, assistindo a infindáveis maratonas de programas de culinária e fazendo listas de coisas que nunca faria. Com o tempo, a insônia foi se agravando, e ele decidiu que, se não podia dormir, pelo menos poderia se divertir à custa dos que estavam.

Em uma noite particularmente longa, enquanto o relógio marcava 3 da manhã, Tico teve uma ideia brilhante. Ele se vestiu como um ninja (ou, pelo menos, como um ninja que não tinha um bom senso de moda) e decidiu que iria “visitar” seus vizinhos que, ao contrário dele, estavam desfrutando do sono dos justos.

Primeiro, ele foi até a casa da Dona Efigênia, uma senhora que sempre reclamava do barulho na rua. Com um sorriso travesso, ele começou a bater na porta, fazendo imitações de vários animais. Primeiro, ele grunhiu como um porco, depois miou como um gato e, por último, uivou como um lobo. A Dona Efigênia, que estava tendo um sonho maravilhoso com um bolo de chocolate, acordou assustada, pensando que um zoológico tinha se instalado em sua sala. Quando abriu a porta, encontrou Tico agachado, fazendo a pose de um gato.

— O que você está fazendo, Tico? — perguntou ela, com os olhos arregalados.

— Apenas testando se a senhora está sonhando! — respondeu ele, tentando conter o riso.

A Dona Efigênia, com um olhar de quem não tinha a menor paciência para brincadeiras, fechou a porta na cara dele. Mas Tico não estava disposto a desistir. Ele seguiu para a casa do Seu Joaquim, um aposentado que sempre sonhava em voltar a pescar.

Ao chegar lá, decidiu que a melhor estratégia seria imitar o barulho de um peixe fora d'água. Ele se jogou no chão e começou a se contorcer, fazendo ruídos estrondosos. O Seu Joaquim acordou, pulou da cama e correu para a sala, armado com um taco de beisebol que mantinha para "emergências".

— O que está acontecendo aqui? — gritou ele, olhando para Tico se debatendo no chão.

— Estou apenas fazendo uma pesca noturna, Seu Joaquim! — respondeu Tico, gargalhando.

Naturalmente, o Seu Joaquim não achou graça nenhuma. Ele deu uma rápida olhada para Tico e saiu para a rua, murmurando algo sobre “juventude perdida” e “jovens insensatos”.

Com uma sensação crescente de missão cumprida, Tico decidiu que ainda não era hora de parar. Ele se dirigiu para a casa do Luís, o estudante que sempre tirava notas altas, mas que tinha uma aversão a qualquer tipo de perturbação. Tocou a campainha e, assim que Luís abriu a porta, ele começou a fazer uma apresentação de stand-up, mas com piadas completamente sem graça.

— Você sabe por que a galinha atravessou a estrada? Para ir do outro lado! — disse Tico, enquanto Luís, sem paciência, tentava entender o que acontecia àquelas horas da noite.

Luís, que estava prestes a fazer uma prova importante, não achou muita graça e, em um impulso, empurrou Tico para fora de casa, fechando a porta com força. Tico, no entanto, não se deixou abalar. Em vez disso, decidiu que era hora de uma nova abordagem.

Ele foi até o parque, onde alguns jovens costumavam se reunir à noite para tocar violão.  Juntou-se a eles e começou a cantar, mas em vez de músicas conhecidas, ele fez versões paródicas de clássicos, como “Garota de Ipanema” transformada em “Garoto de Insônia”. A letra, que falava sobre coisas totalmente sem sentido, fez com que todos se unissem a ele, rindo e se divertindo.

No entanto, a festa logo atraiu a atenção dos vizinhos, que saíram de suas casas, sonolentos e irritados. A cena era hilária: pessoas de pijama, com cabelos desgrenhados, tentando descobrir o que estava acontecendo. Tico, percebendo que havia criado um verdadeiro show improvisado, decidiu que era hora de encerrar a apresentação.

— Obrigado, pessoal! Espero que tenham gostado! E lembrem-se: a insônia pode ser divertida! — gritou, antes de sair correndo, rindo da confusão que deixara para trás.

Na manhã seguinte, enquanto os moradores da rua tentavam recuperar o sono perdido, Tico percebeu que talvez estivesse indo longe demais. Ele sentiu uma pontinha de culpa ao ver a Dona Efigênia, o Seu Joaquim e o Luís todos com olheiras profundas. Mas logo essa culpa se transformou em uma nova ideia.

— Que tal uma festa do pijama? — pensou, já imaginando a diversão.

E assim, ele começou a planejar um evento que traria todos os vizinhos para uma noite de risadas e histórias, prometendo que, ao menos uma vez, eles poderiam se divertir juntos, mesmo que isso significasse perder algumas horas de sono.

Enquanto isso, ele continuava a infernizar a vida dos que dormiam, mas agora com uma pitada de humor e um convite para a festa do pijama. Afinal, quem disse que a insônia não poderia ser uma bênção disfarçada? Só não se sabe para quem.

Fontes:
 José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: Plat Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

O encontro no cemitério

Era uma noite tranquila em Piracicaba, e a lua cheia iluminava a rua Boa Morte, onde o Leandro, dono da funerária "Pé na Cova", fazia sua última checagem nas flores do altar no cemitério. Ele sempre achou que as flores eram como os clientes: tinham que estar sempre bem apresentáveis, mesmo que a maioria não estivesse mais entre os vivos.

Enquanto isso, Belarmino, um vendedor ambulante que passara os últimos anos viajando pelo Brasil, finalmente decidira voltar à sua cidade natal. Ele carregava uma sacola cheia de bugigangas variadas — desde chaveiros de plástico até garrafinhas de água com a imagem do Cristo Redentor. Seu retorno, no entanto, não era apenas para vender suas quinquilharias, mas também para visitar os túmulos dos pais.

Assim que Belarmino chegou ao cemitério, avistou Leandro, que estava concentrado em arrumar as flores. Um sorriso brotou em seu rosto ao ver o amigo de infância.

— E aí, Leandro! — gritou Belarmino, acenando com a mão. — O que você está fazendo tão tarde aqui? Esperando alguém?

Leandro virou-se, surpreso, e logo reconheceu a figura conhecida. 

— Belarmino! Que surpresa! Você não mudou nada, só adicionou algumas bugigangas a mais! — riu Leandro, enquanto se aproximava.

— É, meu amigo! O mundo é cheio de coisas inúteis, e eu sou o mestre em vendê-las! — respondeu Belarmino, piscando.

— Que bom que você voltou! Estava pensando em quem eu poderia contratar para ajudar na funerária. Você não quer trabalhar comigo? Poderíamos usar alguém com seu talento de vendas.

Belarmino arregalou os olhos, como se Leandro tivesse sugerido que ele vendesse almas.

— Trabalhar em uma funerária? Ah, não, Leandro! Você sabe que eu sou supersticioso! — disse ele, dando um passo para trás, como se afastasse um espírito maligno.

— Supersticioso? E desde quando? Você sempre foi o primeiro a se arriscar em tudo! — provocou Leandro, cruzando os braços.

— Olha, eu já vendi de tudo, de cuia de chimarrão a saquinho de erva-dos-gatos. Mas trabalhar em um lugar que lida com a morte? Isso é de dar medo! — respondeu Belarmino, olhando ao redor como se esperasse ver fantasmas.

Leandro riu e gesticulou dramaticamente.

— Ah, vai! Você não precisa ter medo! Morto não morde! Venha passar um tempinho aqui. Você ia adorar. Podemos até criar promoções! “Compre um caixão e leve um jazigo de brinde!”

Belarmino fez uma careta.

— E se as almas não gostarem da promoção? Já pensou que eu posso atrair uma maldição? — a expressão no rosto era de receio genuíno.

— Maldição? Você já vendeu itens com zumbis e ainda está aqui, vivinho da silva! Olha, a gente poderia fazer um grande evento: “O Dia da Morte com Desconto!” — sugeriu Leandro, rindo.

— Isso é um marketing pesado, meu amigo! — Belarmino balançou a cabeça, tentando se conter. — E se, em vez de clientes, aparecerem só almas penadas?

— Então a gente oferece um pacote promocional: “Traga um amigo e ganhe uma lápide personalizada!” — Leandro se divertia com a ideia.

Belarmino não conseguia mais se conter. 

— Você é maluco, sabia? Mas não posso negar que a ideia é boa! E quanto mais eu penso, mais eu imagino o caos que isso ia causar no cemitério. 

Leandro, agora sério, perguntou:

— Mas, sinceramente, o que você tem contra a morte? Todo mundo vai passar por isso um dia. A diferença é que eu ajudo a tornar a passagem mais tranquila.

Belarmino suspirou, um pouco mais sério agora.

— Olha, eu só não gosto de lidar com essas coisas. É como se eu fosse um vendedor de sonhos e você fosse o vendedor do fim. Não dá! Eu prefiro o lado alegre da vida!

Leandro assentiu, compreendendo a perspectiva do amigo. 

— Tá certo, Belarmino. Mas uma coisa é certa: se precisar de caixão, você sabe onde me encontrar! — disse, piscando.

— E se precisar de bugiganga, é só me contatar! — Belarmino respondeu, estendo a mão com um cartão.

Os dois se entreolharam e, por um momento, a amizade que os unia desde a infância se fortaleceu ainda mais. 

— Então, vamos tomar uma cerveja? — sugeriu Leandro, mudando de assunto. — Para celebrar nossos trabalhos!

— Com certeza! E nada de ultrapassar os limites do cemitério, hein? — Belarmino disse, enquanto os dois caminhavam em direção à saída.

A cerveja que Leandro e Belarmino escolheram era uma artesanal local chamada "Pira Pura". Servida em canecos de vidro gelado, sua cor âmbar brilhante refletia a luz da lua, criando um brilho dourado que parecia dançar entre as bolhas.

Leandro e Belarmino estavam sentados em uma mesa de madeira rústica, com os canecos de "PiraPura" à frente. A conversa começou a fluir naturalmente, acompanhada de risadas. 

Leandro começou a contar casos que ocorreram com ele: “Houve uma vez em que um cliente pediu um caixão "temático", sabia? Ele queria um que parecesse uma guitarra!”

 Ah, claro, lembro vagamente! E você acabou fazendo um caixão que mais parecia um palco de rock! O cara deveria ter sido enterrado com um microfone! (Fingindo ser solene) "Aqui jaz o grande roqueiro, que nunca parou de tocar até o fim!" E o que foi aquele funeral? Todo mundo dançando e batendo cabeça ao som de "Highway to Hell"!

Ambos riram muito.

Leandro abrindo os braços disse: “Foi o primeiro enterro que eu vi ser animado! Aposto que até as almas estavam batendo palmas!  Mas teve uma vez que eu fui fazer uma visita a um cemitério onde um "cliente" pediu para ser cremado com seu gato. Fui até lá e, surpresa! O gato estava mais vivo que nunca!"

— O que você fez? Deu um jeito de convencer o gato a entrar no caixão? - disse, rindo.

— Até que tentei convencer o gato, ele simplesmente se recusou a entrar, deu um miado e sumiu de vista.

— É, gato é um bicho complicado. Eles têm um senso de sobrevivência bem apurado!” – disse Belarmino, rindo. 

— E você, Belarmino? Alguma história engraçada das suas vendas de bugigangas?

— Ah, teve uma vez que eu tentei vender chapéus de palha em uma feira. Um cliente pegou um e disse: "Esse chapéu é tão bonito que me faz parecer rico!" E eu respondi: "Se você comprar dois, eu garanto que você vai parecer um milionário!" 

Leandro rindo: “E o que aconteceu? O cara comprou dois?”

— Não! Ele ficou tão distraído que saiu correndo e deixou o chapéu pra trás!

Leandro se divertindo: “Então você se tornou o primeiro vendedor a vender chapéus invisíveis!” 

— Exatamente! E ainda consegui um novo slogan: ‘Se você não vê, é porque é caro!’

Os dois gargalharam, e a cerveja "Pira Pura" descia suave, acompanhada de histórias que só reforçavam a amizade deles. 

Leandro levantando o caneco: Às nossas aventuras! Que venham mais histórias malucas!

— E que cada caneco venha cheio de boas risadas! Saúde!

Os canecos se chocaram mais uma vez, ecoando na noite, enquanto eles continuavam a compartilhar suas memórias hilárias, cada gole de cerveja trazendo à tona mais risadas e lembranças.

E assim, sob a luz da lua e com risadas ecoando pelo cemitério, Leandro e Belarmino se afastaram, cada um com suas peculiaridades, mas unidos pela amizade que transcendia até mesmo a linha da vida e da morte.

Fontes:
 José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR:Plat Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Abelardo e Azeitona

 
Abelardo sempre foi um homem solitário, mas sua vida ganhou um novo significado quando decidiu adotar um cachorro de rua. Ele o chamou de Azeitona, um nome que refletia tanto a cor do pelo do animal quanto sua personalidade travessa. Desde filhote, Azeitona se tornou o melhor amigo de Abelardo, acompanhando-o em todas as suas aventuras e se tornando parte de sua rotina.

Os dois eram inseparáveis. Todos os dias, ao amanhecer, eles se dirigiam ao parque da cidade, onde Azeitona corria livremente, brincando com outros cães e perseguindo folhas que voavam com o vento. O parque era um refúgio para Abelardo, um lugar onde ele se sentia em paz, cercado pela natureza e pela alegria de seu fiel amigo.

Certa tarde, como de costume, Abelardo decidiu fazer uma pausa em um dos bancos do parque. O dia estava ensolarado e calmo. Ele observou Azeitona brincar com uma bolinha que havia trazido, rindo com a energia do cão. Mas, em um momento de distração, ele fechou os olhos e deixou-se levar pela brisa suave. Quando os abriu, Azeitona havia desaparecido.

O coração de Abelardo disparou. "Azeitona!" ele chamou, mas o silêncio do parque respondeu apenas com o farfalhar das folhas. Ele se levantou rapidamente, o desespero tomando conta de seu peito. Começou a procurar, chamando pelo nome do cachorro, perguntando a todos que encontrava pelo caminho se haviam visto seu amigo. Cada resposta negativa parecia um golpe, e a angústia crescia a cada segundo.

Percorreu o parque em busca de Azeitona, passando por caminhos que nunca havia explorado. Ele se sentia perdido, não apenas em relação ao espaço, mas também em sua própria esperança. Horas se passaram, e a luz do sol começou a se pôr, colorindo o céu com tons de laranja e rosa, mas isso não trazia conforto.

Do outro lado do parque, Azeitona também estava angustiado. Ele havia se afastado, atraído por um grupo de crianças que brincavam com uma bola. Quando percebeu que seu dono havia desaparecido, entrou em pânico. Correu por arbustos e trilhas desconhecidas, chamando por Abelardo, mas não conseguia encontrá-lo. O desespero tomou conta do pequeno cão, que começou a ganir, ecoando sua tristeza.

Finalmente, após horas de busca, Abelardo ouviu um som familiar. Era um ganido fraco, mas cheio de desespero. Seu coração se encheu de esperança. Ele seguiu a direção do som e, ao virar uma esquina, avistou Azeitona, encolhido em um canto, tremendo de medo.

Os olhos de Abelardo se encheram de lágrimas. Ele correu até Azeitona, que o reconheceu instantaneamente. O cachorro saltou para os braços do homem, abanando o rabo com toda a força que tinha, como se quisesse compensar cada segundo em que estiveram separados. Abelardo o abraçou com força, sentindo a suavidade do pelo e o calor do corpo de Azeitona.

"Eu pensei que nunca mais te encontraria, meu amigo!" disse, a voz embargada pela emoção.

Azeitona, aliviado e feliz, lambeu o rosto de Abelardo, expressando toda a sua alegria. O rabo do cachorro balançava freneticamente, quase parecendo um chicote, e Abelardo não pôde deixar de rir.

"Vai devagar com este rabo, parece um chicote!" brincou ele, enquanto algumas pessoas que haviam se juntado à busca também riam e se emocionavam com o reencontro.

O parque, que antes parecia um labirinto de incertezas, agora se enchia de alegria. Abelardo e Azeitona estavam juntos novamente, e isso era tudo o que importava. A amizade entre eles se fortalecia ainda mais naquele momento. Agradecendo a todos que o ajudaram, Abelardo se sentiu grato, não apenas por ter encontrado seu amigo, mas também pela solidariedade que o cercava.

Os anos passaram, e a relação entre Abelardo e Azeitona se aprofundou. O parque, que uma vez foi o cenário de seu reencontro emocionante, tornou-se o palco de muitas memórias: corridas alegres, piqueniques sob a sombra das árvores e longas caminhadas ao pôr do sol. Abelardo observou Azeitona crescer, seu pelo escurecendo e suas patas se tornando mais lentas. No entanto, o brilho nos olhos do cão nunca se apagou.

Com o passar do tempo, Abelardo também sentiu os efeitos da idade. Seus cabelos, antes escuros, agora eram salpicados de grisalhos, e sua energia não era mais a mesma. Mas a presença de Azeitona ao seu lado sempre o animava. O cachorro parecia entender quando Abelardo estava cansado, fazendo questão de parar e descansar um pouco, como se quisesse preservar cada momento juntos.

Certa manhã, enquanto caminhavam pelo parque, Abelardo se sentou em um banco, observando o movimento ao seu redor. As crianças brincavam, os casais passeavam de mãos dadas, e os pássaros cantavam nas árvores. Ele olhou para Azeitona, que se deitou ao seu lado, com a cabeça apoiada nas patas dianteiras. Era um momento simples, mas cheio de significado.

"Azeitona, você sempre esteve comigo, não é?" Abelardo disse, acariciando o pelo macio do cachorro. "Passamos por tantas coisas juntos."

O cão levantou a cabeça, olhando para Abelardo com seus olhos expressivos. Era como se ele entendesse cada palavra, cada sentimento. Azeitona lambeu a mão do homem, como se quisesse confortá-lo.

Com o tempo, as caminhadas se tornaram mais curtas. Azeitona, agora um velho amigo, preferia explorar os pequenos caminhos do parque, cheirando cada cantinho e apreciando a brisa suave. Abelardo, por sua vez, começou a notar que a energia de seu fiel companheiro estava diminuindo. As corridas alegres foram substituídas por caminhadas lentas e contemplativas.

Certa tarde, enquanto se sentavam juntos em seu banco favorito, Abelardo sentiu uma pontada de tristeza. Ele sabia que o tempo era implacável e que cada dia que passava era precioso. Olhando Azeitona, ele percebeu que o cachorro havia se tornado mais do que um amigo; era uma parte de sua alma.

"Eu prometo que vou cuidar de você para sempre, Azeitona," ele disse, a voz embargada. "Você é a melhor parte da minha vida."

Nos meses seguintes, Abelardo fez tudo o que pôde para tornar os dias de Azeitona confortáveis. Ele comprou cobertores macios e petiscos especiais, e sempre que possível, tentava levar o cachorro ao parque. A amizade deles era uma fonte de força, e mesmo nos dias mais difíceis, o amor que compartilhavam iluminava suas vidas.

Certa manhã, enquanto o sol nascia, Abelardo acordou e percebeu que Azeitona não estava ao seu lado. Um frio na barriga tomou conta dele. Ele se levantou e procurou por toda a casa, até que encontrou seu querido cão deitado em sua cama, respirando calmamente, mas com um olhar distante. Abelardo se ajoelhou ao lado dele, acariciando sua cabeça.

"Oi, meu velho amigo," disse Abelardo, a voz trêmula. "Eu estou aqui."

Azeitona levantou a cabeça lentamente, reconhecendo a presença de seu dono. Abelardo sentiu uma onda de nostalgia ao recordar todos os momentos que compartilharam. Ele se lembrou das corridas no parque, das risadas, e da profunda conexão que formaram ao longo dos anos.

Naquele instante, Abelardo decidiu que faria daquele dia um dia especial. Ele preparou um piquenique com os petiscos favoritos de Azeitona e os levou para o parque. Sentaram-se juntos sob a sombra de uma árvore, e Abelardo compartilhou histórias de suas aventuras, como se o tempo tivesse parado.

"Você sempre foi meu melhor amigo, Azeitona," ele disse, olhando nos olhos do cachorro. "E sempre será."

Enquanto o sol se punha, Abelardo percebeu que a luz nos olhos de Azeitona estava começando a se apagar. O amor que compartilhavam era eterno, e ele sabia que, não importava o que acontecesse, Azeitona sempre estaria em seu coração.

Uma onda de tristeza envolveu Abelardo. O peso do tempo, das memórias e da iminente perda o atingiu como um soco no estômago. O amor que sentia por aquele cachorro era tão profundo que parecia quase insuportável.

"Eu não sei o que vou fazer sem você," ele murmurou, a voz tremendo. "Você é tudo para mim."

A tristeza começou a se transformar em um nó apertado no peito, e Abelardo sentiu seu coração disparar. Ele tentou ignorar, mas a sensação era esmagadora. O desespero de perder Azeitona era tão intenso que ele se viu lutando para respirar. 

"Por favor, não me deixe," implorou, enquanto as lágrimas escorriam por seu rosto. 

Nesse momento, a dor se intensificou, e, de repente, Abelardo caiu para trás, o coração não suportou a carga emocional. Ele caiu no chão, ainda segurando Azeitona em seus braços, o cachorro imediatamente percebendo a mudança. Azeitona lambeu o rosto de Abelardo, como se tentasse acordá-lo, mas o homem não respondeu.

Naquela entardecer, enquanto a lua começava a iluminar o céu, Azeitona fechou os olhos pela última vez, com a cabeça apoiada no colo de Abelardo.

O parque, antes cheio de vida, silenciou. As risadas e os sons da natureza se tornaram um eco distante. As pessoas que passavam notaram a cena e correram em direção a Abelardo, mas era tarde demais. O amor incondicional que unia os dois havia se tornado um laço eterno, selado naquele último abraço.

As lágrimas começaram a cair dos rostos dos que assistiam à cena, muitos lembrando-se de seus próprios amores e perdas. Era um momento de profunda conexão, uma lembrança de que, mesmo em sua fragilidade, o amor pode ser uma força poderosa e transformadora.

Para aqueles que testemunharam a cena, nada seria igual. A história de Abelardo e Azeitona se tornaria uma lenda local, um exemplo de amor puro e incondicional que transcendeu a barreira entre o homem e o animal, mostrando que, mesmo em sua diferença, eles eram iguais na profundidade de seus sentimentos.

E assim, juntos, eles deixaram este mundo — um em um último suspiro em um amor que nunca morreria. O parque, repleto de memórias, agora guardaria para sempre a essência daquele amor imenso, imortalizado no coração de todos que tiveram a sorte de conhecer a história de Abelardo e Azeitona.

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

O sol dentro de mim

 Texto construído tendo por base a trova da Magnífica Trovadora Therezinha Dieguez Brisolla (São Paulo/SP)

Se vejo o mundo às escuras,
embarco em meu sonho...e assim,
subo a escada e, nas alturas,
acendo um sol para mim!

Em uma manhã nublada, na pequena cidade de Luzemar, onde o céu parecia sempre um pouco mais cinza do que o desejado, um homem chamado Vicente caminhava pelas ruas, refletindo sobre a vida. Ele sempre fora um sonhador, alguém que via o mundo através de uma lente cheia de cores, mesmo quando tudo ao seu redor parecia desbotado. Vicente acreditava que, por trás das nuvens, havia sempre um sol esperando para brilhar.

Aquela manhã, como muitas outras, começou com uma sensação de opressão no peito. O dia estava triste, e os habitantes da cidade pareciam carregar um peso invisível. As crianças brincavam, mas suas risadas não tinham o mesmo brilho de antes. Os adultos passavam apressados, os rostos fechados e os olhos perdidos em suas preocupações. 

Vicente, porém, tinha um talento especial: ele conseguia transformar a escuridão em luz. E foi assim que, ao passar por uma escada que levava ao parque da cidade, decidiu que era hora de acender seu próprio sol.

Ele subiu os degraus com a determinação de quem sabe que há algo maior à sua espera. A escada, antiga e cheia de histórias, parecia resistir ao tempo. Cada passo era como uma pequena vitória contra a melancolia que o cercava. 

Chegando ao topo, Vicente olhou ao redor: o parque, mesmo sob o céu nublado, tinha uma beleza particular. As árvores dançavam suavemente ao vento e as flores, apesar da falta de sol, exalavam um perfume doce.

Vicente respirou fundo e fechou os olhos. Ele se lembrou da trova que costumava de sua mãe: “Se vejo o mundo às escuras, embarco em meu sonho... e assim, subo a escada e, nas alturas, acendo um sol para mim!” Essas palavras ressoaram em sua mente, como um mantra que o encorajava a buscar a luz dentro de si.

Decidido a espalhar essa luz, Vicente começou a cantar. A princípio, sua voz era suave, quase como um sussurro. Mas, à medida que se sentia mais à vontade, sua canção se transformou em um hino de alegria. 

Ele cantava sobre sonhos, sobre a beleza do mundo e sobre a esperança que sempre renasce, mesmo nas horas mais sombrias. A melodia flutuava pelo ar, como uma brisa leve, e aos poucos, começou a atrair a atenção dos passantes.

As pessoas pararam e começaram a olhar. Um a um, foram se juntando a Vicente. Algumas crianças, curiosas, se aproximaram e começaram a dançar. Os adultos, inicialmente hesitantes, não demoraram a se deixar levar pela música. A atmosfera pesada que envolvia Luzemar começou a dissipar-se. Os rostos, antes fechados, foram se iluminando, e os olhos ganharam um brilho que há muito não se via.

Vicente percebeu que havia acendido algo muito maior do que um simples sol. Ele havia reacendido a chama da comunidade. As pessoas começaram a compartilhar histórias, risadas e até mesmo suas preocupações. O parque, que antes parecia um lugar esquecido, transformou-se em um espaço de união.

Enquanto a tarde avançava, o céu nublado começou a se abrir. Raios de sol começaram a penetrar as nuvens, como se o próprio universo estivesse respondendo àquela explosão de alegria. Vicente, com um sorriso no rosto, olhou para cima e viu que, embora o mundo estivesse às escuras, havia sempre uma luz a ser encontrada, mesmo que fosse dentro de nós mesmos.

O dia que começou triste se transformou em uma celebração da vida. Vicente, com sua voz e seu sonho, acendeu um sol que não só iluminou seu coração, mas também trouxe calor e vida a todos ao seu redor. Naquele momento, ele percebeu que a verdadeira magia não estava em mudar o mundo, mas em inspirar outros a encontrar a luz que já existia dentro deles.

Ao final da tarde, enquanto o sol se punha no horizonte, Vicente desceu a escada com um novo propósito. Ele sabia que as nuvens poderiam voltar, que os dias sombrios fariam parte da vida. Mas, com a experiência daquela tarde, ele também aprendeu que, mesmo nas horas mais difíceis, sempre poderia subir a escada do sonho e acender um sol para si e para os outros.

E assim, entre risos e canções, Luzemar voltou a brilhar, não apenas com a luz do sol físico, mas com a luz da esperança e da união. Vicente, agora mais do que um sonhador, tornou-se um verdadeiro farol para sua comunidade, mostrando que, às vezes, tudo o que precisamos é de coragem para subir as escadas e acender nossos próprios sóis.

Fontes 
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR:Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

O lamento da terra

 Texto construído tendo por base a trova de José Lucas de Barros (Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015,  Natal/RN)

Viram cinza os verdes braços
de árvores tão bem formadas
e a terra morre aos pedaços
por onde vão as queimadas!

Na pequena cidade de Verdeluz, onde a natureza sempre foi a protagonista, o verde das árvores e o canto dos pássaros formavam uma sinfonia que encantava a todos. As colinas eram cobertas por florestas densas, e os rios serpenteavam alegremente, trazendo vida e frescor ao ambiente. No entanto, nos últimos anos, algo sombrio começou a se espalhar por aquelas terras outrora vibrantes.

Os moradores de Verdeluz, sempre em harmonia com a natureza, notaram que as árvores, antes exuberantes e saudáveis, começaram a perder seu brilho. “Viram cinza os verdes braços de árvores tão bem formadas”, murmuravam os mais velhos, enquanto as crianças, sem entender a profundidade da tristeza, brincavam entre os troncos que começavam a se tornar estéreis. A terra, que um dia parecia pulsar com vida, agora mostrava sinais de cansaço e desespero.

O responsável por essa transformação drástica era a prática das queimadas. A busca desenfreada por terras para cultivo e pastagem levou muitos a incendiar áreas florestais, sem considerar as consequências. As chamas consumiam tudo em seu caminho, deixando atrás de si uma paisagem desoladora, uma cicatriz permanente na terra que nutria a vida. 

“A terra morre aos pedaços por onde vão as queimadas”, pensava Ana, uma jovem ativista local que sempre se preocupou com o meio ambiente.

Ana cresceu em Verdeluz e tinha uma conexão profunda com a natureza. Desde criança, costumava passar horas explorando as florestas, aprendendo sobre plantas e animais, e sonhando em um dia se tornar uma defensora da Terra. Ao ver a devastação ao seu redor, ela sentiu que precisava agir. Com o apoio de alguns amigos, decidiu organizar uma campanha de conscientização sobre a preservação da floresta.

Com cartazes coloridos, encontros comunitários e palestras, Ana e seu grupo começaram a mobilizar a população. Eles contavam histórias sobre a importância das árvores, não apenas como provedores de madeira e sombra, mas como guardiãs de um ecossistema que sustentava a vida. A cada reunião, mais pessoas se juntavam à causa, unindo forças para tentar reverter o cenário trágico.

Certa tarde, enquanto caminhava pela floresta, Ana encontrou um velho sábio, conhecido por todos como o Guardião da Floresta. Ele estava sentado sob uma árvore imponente, cujos galhos pareciam tocar o céu. 

“Você trouxe um peso grande em seu coração, minha jovem”, ele disse, olhando nos olhos dela. 

Ana se sentou ao seu lado e desabafou sobre suas preocupações. “Sinto que estamos perdendo nossa casa. As queimadas estão destruindo tudo e ninguém parece se importar.”

O velho sorriu, mas havia tristeza em seu olhar. 

“A natureza sempre encontrará uma forma de se regenerar, mas precisamos cuidar dela com amor e respeito. As árvores têm uma sabedoria que muitas vezes ignoramos”, respondeu ele. “Viram cinza os verdes braços, mas se você reacender a esperança, pode fazer com que voltem a florescer.”

Inspirada pelas palavras do Guardião, Ana decidiu que era hora de agir de forma mais intensa. Com a ajuda da comunidade, organizaram um grande evento: o Festival da Reflorestação. Seria um dia de celebração, conscientização e, principalmente, plantio de árvores. O evento atraiu a atenção de muitos, e pessoas de várias partes da cidade se uniram à causa.

No dia do festival, a atmosfera era mágica. Músicos tocavam, crianças corriam com sorrisos iluminados, e os adultos se preparavam para plantar novas árvores. Ana sentiu que a esperança estava renascendo naquelas pequenas mãos que seguravam mudas de árvores. Ela viu ali uma nova geração disposta a lutar pelo que é certo.

Com cada árvore plantada, Ana sentiu que a conexão com a terra se fortalecia. As raízes que se entranhavam na terra eram como promessas de um futuro mais verde. “Juntos, podemos mudar o curso da história”, ela dizia para todos os que se reuniam ao seu redor. “Cada árvore que plantamos é um passo em direção à cura da nossa terra.”

Os meses se passaram, e o que começou como um pequeno movimento cresceu. As árvores plantadas começaram a brotar, e a vida retornou lentamente às áreas que haviam sido devastadas. As pessoas começaram a perceber a importância de cuidar da natureza, e a consciência coletiva despertou para a necessidade de preservar o que restava.

Certa manhã, ao acordar e olhar pela janela, Ana viu que a floresta estava mais vibrante do que nunca. As árvores, que antes pareciam tristes e cinzentas, agora exibiam uma nova folhagem, como se dançassem ao vento, agradecendo por terem sido resgatadas. 

“A terra não morre, ela se transforma”, pensou Ana, sentindo uma onda de gratidão.

O Guardião da Floresta apareceu novamente, e Ana correu até ele. 

“Olhe para o que conseguimos fazer!”, exclamou, cheia de alegria. 

O velho sorriu, seus olhos brilhando. “Vocês reacenderam a luz que havia se apagado. Mas lembre-se, a luta é contínua. A proteção da natureza é uma jornada, não um destino.”

E assim, em Verdeluz, a luta pela preservação se tornou uma parte da vida cotidiana. As queimadas diminuíram, e a floresta começou a se recuperar. A comunidade aprendeu que a beleza da natureza não é apenas um presente, mas uma responsabilidade. Pois onde a sombra cobre e embaça, ainda há esperança, e cada gesto de cuidado pode reacender a luz que ilumina a vida da Terra.

Fontes 
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

domingo, 19 de janeiro de 2025

A verdadeira face

 Texto construído tendo por base a trova de Filemon Martins (São Paulo/SP)

Da vida não quero a glória
que tanto engana e seduz.
Prefiro não ter história
a renunciar minha cruz.

Na pequena vila de São Lázaro, onde as montanhas se erguiam majestosas e os rios cantavam em seu leito, vivia um homem chamado Elias. Ele era um camponês simples, conhecido por sua generosidade e pela serenidade que exalava. Enquanto os outros aldeões se deixavam levar pela busca incessante por fama e riqueza, Elias se dedicava a cultivar sua horta e cuidar de sua família. Para ele, a vida era uma jornada de aprendizado, e não uma corrida em busca de reconhecimento.

Certa vez, durante uma festa na aldeia, um viajante chegou, trazendo consigo histórias de grandes conquistas e glórias. Ele falava de palácios, tesouros e da admiração que recebia por onde passava. Os aldeões, fascinados, rodearam o homem e deixaram de lado suas atividades cotidianas. O viajante, percebendo a atenção que atraía, começou a incitar a ambição nas pessoas, sugerindo que a vida sem glória era uma vida sem valor.

Elias, que observava em silêncio, sentiu um desconforto crescente. Ele conhecia as armadilhas que a busca pela glória podia trazer. Não era a fama que deixava marcas na alma, mas a vivência honesta e autêntica de cada dia. Ao final do evento, ele se aproximou do viajante e, com um olhar calmo, disse: “Da vida não quero a glória que tanto engana e seduz. Prefiro não ter história a renunciar minha cruz.”

O viajante riu, achando que o camponês falava de maneira ingênua. 

“Como pode não querer ser lembrado? A história é o que nos torna imortais!” 

Elias, porém, não se deixou abalar. Ele sabia que a verdadeira imortalidade não estava em ser lembrado, mas em deixar uma marca no coração das pessoas ao seu redor, por meio de ações simples e significativas.

Com o passar dos dias, o viajante decidiu ficar na aldeia, convencendo alguns moradores a se juntarem a ele em sua busca por riqueza e fama. Prometeu que, juntos, poderiam conquistar o mundo e ser lembrados por gerações. Muitos se deixaram seduzir por suas promessas, abandonando suas terras e suas tradições em busca de um futuro glorioso.

Enquanto isso, Elias continuou sua vida simples, cuidando de sua horta e ajudando os vizinhos. Ele não se importava com o que os outros pensavam, pois sabia que a verdadeira felicidade residia nas pequenas coisas: o canto dos pássaros, o crescimento das plantas, o riso de uma criança. Ele carregava em seu coração o peso da cruz, mas essa cruz, longe de ser um fardo, era um símbolo de sua resiliência e de sua conexão com a vida.

O tempo passou e o viajante, junto com seus seguidores, partiu em busca de aventuras. Prometeu voltar com riquezas e histórias que deixariam todos deslumbrados. No entanto, meses se passaram sem notícias, e a vida na aldeia continuou seu curso. Aqueles que deixaram suas raízes começaram a sentir a falta do lar, da simplicidade e do calor humano que haviam abandonado.

Um dia, após um ano de ausência, o viajante voltou, mas não como um herói. Ele apareceu desolado, com roupas rasgadas e o olhar vazio. Os que estavam com ele o seguiam, mas seus rostos eram marcados pela fadiga e pela desilusão. O que havia prometido se revelou uma ilusão: a busca pela glória os levou a um caminho de frustração e solidão.

Elias, ao ver o viajante em tal estado, sentiu compaixão. Ele se aproximou e ofereceu-lhe água e comida. “A vida é um ciclo, e às vezes as escolhas que fazemos nos ensinam lições difíceis”, disse Elias. O viajante, agora sem palavras de bravura, apenas assentiu, compreendendo a profundidade do que o camponês havia tentado lhe ensinar desde o início.

Aqueles que retornaram com o viajante, ao observar a simplicidade da vida de Elias, começaram a perceber o valor que havia em suas ações cotidianas. Eles se sentaram ao seu redor e ouviram suas histórias sobre como, mesmo sem fama, ele tocava a vida das pessoas ao seu redor. Ele falava sobre a importância de estar presente para os outros, de cultivar relacionamentos e de encontrar beleza nas pequenas coisas.

Com o tempo, a aldeia se transformou. As pessoas começaram a valorizar o que realmente importava: a comunidade, a solidariedade e a autenticidade. A busca pela glória deu lugar a um desejo de ser útil e de viver com propósito. A vida de Elias se tornou um exemplo, não de fama, mas de integridade.

O viajante, que antes acreditava que a glória era tudo, começou a entender que a verdadeira riqueza estava nas conexões que se formam ao longo da vida. Ele se tornou um contador de histórias, mas agora suas histórias eram sobre humildade, aprendizado e a beleza de uma vida bem vivida.

Elias, por sua vez, continuou a viver de acordo com suas convicções. Ele nunca se preocupou em deixar uma grande história como legado. Para ele, o que realmente importava era o amor que compartilhava e o impacto que tinha nas vidas ao seu redor. Ao final de seus dias, ele partiu em paz, sabendo que havia vivido plenamente, sem renunciar à sua cruz, mas sim abraçando-a como parte essencial de sua jornada.

E assim, na pequena vila de São Lázaro, a verdadeira glória não estava nas histórias grandiosas, mas nas vidas que foram tocadas pela simplicidade, pela bondade e pela autenticidade de um homem que preferiu não se deixar seduzir pelas ilusões da fama.

Fontes 
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

O Ajudante Robô na Horta

Certa manhã, Dona Elda decidiu que era hora de modernizar a horta. Após ver um comercial sobre um robô ajudante, ela teve uma ideia. — Lelé,...