sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Gwyddion (Tchutchu)

 

Há encontros que chegam como um corte súbito numa manhã qualquer e transformam para sempre o curso de um dia, de uma casa, de uma vida. Foi numa dessas manhãs, num sábado em Taboão da Serra, que ouvi um miadinho choroso, tão baixo que mais parecia um apelo sussurrado entre o asfalto e o ar. Eu subia a rua para pegar o ônibus para o laboratório de análises clínicas, e aquele som agudo me puxou para trás. Um filhote magro, maltrapilho, escalou minha calça como se buscasse a única mão que poderia segurá-lo. Não hesitei: peguei uma caixinha, depositei nele aquele corpo minúsculo, e voltei para casa com um peso no peito — um incômodo que logo se virou cuidado.

Chegando, expliquei tudo à minha esposa. O gatinho estava tão fraquinho e tão sujo que mal dava para saber a cor do pelo. Um parente, talvez sem ver o que eu via, sugeriu que o jogássemos fora: ele estava anêmico, frágil, nada parecia prometer vida. Nós, porém, demos a nós mesmos um voto diferente. Começamos pelo básico: leite, uma limpeza demorada que parecia arrancar de suas entranhas a poeira do mundo, e uma visita ao veterinário para vacinar e checar o que podia ser feito. O diagnóstico foi simples e, ao mesmo tempo, um alívio — desnutrição. Ou fora perdido, ou abandonado; o que importava era que ali havia uma vida pedindo abrigo.

Adotá-lo foi um processo natural como respirar. Escolhemos para ele um nome que soasse grande e mítico — Gwyddion —, e ao mesmo tempo carinhoso e reduzido, Tchutchu, que era a forma como ele logo passou a ser chamado em todas as bocas da casa. Estipulamos, sem saber de fato, que nascera em 20 de novembro de 1998: um dia para marcar no calendário da nossa memória, um começo legítimo para a sua história conosco.

Tchutchu entrou nas nossas vidas feito um cometa. Apesar de termos outros gatos, ele os conquistou com uma facilidade impressionante para quem observa: olhos brilhantes, um jeitinho pidão, uma intimidade que parecia dizer “sou todo amor, recebam-me”. Dormia no meio de nós dois, preferindo muitas vezes a companhia mais da minha esposa, mas sempre repartindo também comigo o aconchego. Tinha a audácia de deitar nas minhas pernas e ir se esticando, confiando de tal modo na minha segurança que eu o levantava algumas vezes para que não caísse — e toda a cena era uma prova de que confiança também se constrói.

Com o tempo o corpo respondeu aos cuidados: tornou-se um azul e branco vistoso, com rabo grosso e peludinho. O safado se transformou em personagem de mil travessuras. Morávamos em um sobrado, e Tchutchu descobriu o mundo dos limites: um dia subiu no muro do balcão do andar superior e... caiu. Não sabíamos que ele tinha feito aquilo; só percebemos quando surgiram arranhões na porta e um miadinho, um rec-rec engraçado que denunciou o prodígio. Houve outras quedas depois — as lições nunca foram suficientes — e em uma delas o impacto bateu num cano que servia para escoar água e quebrou a ponta dos dentes caninos. Ficou com a cara ainda mais de traquinagem, como se cada falha do corpo apenas acrescentasse caráter.

Quando nos mudamos para Curitiba, Tchutchu e o Lad tomavam conta do quintal, transformando a nossa cadela numa peça perdida entre dois gatos que a divertiam com perseguições que não tinham malícia, apenas jogo. E na cozinha havia outro pequeno teatro: cozinhas precisavam ficar bem fechadas, porque o pilantra aprendeu a empurrar tampas até abri-las e a bifes com a habilidade de um malabarista. Era o nosso relações-públicas felino, sempre pronto a conquistar quem atravessasse o portão.

O frio de Curitiba teve suas provas: quando o termômetro marcava zero e a neblina enchia as manhãs, Tchutchu tinha um modo muito particular de pedir as cobertas — enfiava uma pata gelada no rosto da minha esposa. A cena repetia-se, ela odiava mas suportava, no amor qualquer sacrifício é válido, ele permanecia com uma graça que justificava o susto. Levá-lo conosco na mudança até Ubiratã foi uma epopeia: horas de estrada, sedação, um carro cheio de gatos que parecia uma orquestra de ronrons e miados. Acolhemos o novo lar achando que os corpos e as rotinas se acomodariam; mas havia uma fragilidade emocional que ninguém antevia.

Quando minha esposa teve que voltar a Curitiba por quase um mês para resolver assuntos de trabalho, Tchutchu, tão apegado a ela, entrou num recuo que parecia ancorado em depressão. Ele começou a definhar por dentro, não por falta de comida, mas por falta do afeto que antes era corrente contínua. A saudade instalou-se no peito do gato como um peso impossível de mensurar; e quanto mais o tempo arrastava, mais tênues se tornavam suas forças. Em 7 de março de 2001, com apenas dois anos e quatro meses, Tchutchu exalou o último suspiro — e foi a confirmação cruel do que já temíamos: saudade pode matar.

Perder um animal tão jovem por esse motivo é uma das provas mais duras de que amor e presença não são apenas aconchego — são sobrevivência. Chorei sua perda como se me tivessem arrancado uma fatia viva do peito. A casa ficou mais silenciosa de um jeito que dói: o lugar entre os dois onde ele costumava dormir ficou vazio, as panelas voltaram a ser seguras sem a sombra de uma pata curiosa, e as manhãs perderam aquela aliança de ronrons que fazia do nosso lar uma fortaleza contra a solidão.

Mas a memória não perde brilho. Sempre que penso em Tchutchu vejo o pequeno corpo escalando minha calça, sinto de novo o miadinho choroso que exigiu uma ação sem hesitação. Lembro-me do crescimento de seu pelo azul e branco, das artes que aprontava, das quedas que não aprenderam a ensinar prudência, das travessuras na cozinha e do jeito com que aquecia o colo nas noites frias. Vejo também o momento em que se foi, e através dessa dor compreendo uma lição dura: os animais nos escolhem para nos ensinar a amar com presença, e, quando não estamos, a ausência deles pode ser uma violência irreversível aos corações pequenos.

Tchutchu foi intensidade em pouco tempo. Foi cometa e brasa: entrou, iluminou, consumiu e deixou calor. Foi tanto afeto num corpo felpudo que parecia insuficiente para o efeito que causava. Resta a gratidão por tê-lo resgatado na rua e tê-lo mantido em casa; resta a lembrança das suas travessuras e do seu jeito de confiar. E fica também a advertência que ele deixou em vida: não subestimar o poder do afeto cotidiano, porque para muitos seres ele é ar, alimento e remédio.

Até hoje, quando passo por uma calçada e ouço um miado risonho ou choroso, penso em Tchutchu escalando minha calça, e não consigo evitar o calor no peito. Há homenagens que se fazem sem cerimônia: um gesto, uma lembrança, um olhar para o lugar vazio entre os dois. Nesse lugar, guardo o gato que apareceu num sábado, tão pequeno e pedinte, e que se tornou uma constelação na minha casa — e na minha vida.

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Nuhtara Dahab


 Ela era pura guerreira,
ímpar em sua bravura.
Deixou na hora derradeira
um arco-íris de ternura.

Há nomes que entram na casa como quem anuncia uma história inteira; Nuhtara Dahab foi um desses nomes — um nome em árabe que eu escolhi com a mesma naturalidade com que damos apelidos aos que já nascem prontos para habitar nossas vidas. “Chuva dourada”, pensei, pela pelagem que, sob a luz, refletia um sol dourado. Veio para nós em Curitiba, era siamesa, e desde os primeiros passos — já mãe, já carregando uma promessa de filhotes — mostrou que não se acomodaria em papel de coadjuvante. Entrou, sim, para mandar.

Nasceu em 20 de outubro de 1999. Tímida, ela cruzou com o gato angorá Floco de Neve (Floquinho) que vivia conosco. Nasceu então, pouco depois de sua chegada à nossa casa, um parto difícil que nos deixou em vigília: Cookie e Cotton Candy chegaram entre sustos e cuidados. Nuhtara, que parecia pequena e delicada, mostrou ali uma força primitiva: a paciência de quem segura o mundo com uma pata e a segurança de quem sabe fabricar afeto. Mais tarde, teve a Goldie — uma filha que era a cara da mãe, “cuspida e escarrada” como quem repete traços e jeitos num gesto de fidelidade genealógica.

Ela foi mãe de muitos gestos. Havia nela uma doçura específica: carinhosa com os filhotes, vigilante, sempre atenta aos sinais de fome e de perigo. Mas o cuidado de Nuhtara ia além da sua prole: com o tempo se tornou mãe adotiva do Nino, um filhote que, abandonado e pequeno, foi acolhido por ela com um desejo quase visceral de amamentar. Já não tinha leite, mas o corpo e o coração resolveram produzir novamente; foi como se a maternidade tivesse em Nuhtara a força de um ato de fé. Ela o alimentou, abrigou e deu um lar que precisava do seu sossego.

Nuhtara cresceu e se impôs líder. Em nossa casa, que chegou a ter — mais tarde — quinze gatas, ela fez-se referência. Não governava com violência, mas com autoridade: um miado baixo e rouco, quase inaudível, bastava para restabelecer a ordem quando a algazarra crescia demais. Lembro como, nos momentos de maior confusão felina, era aquele miado — uma nota grave, carregada de realeza — que silenciava o rebanho todo. O silêncio que se seguia era absoluto, respeitoso, quase reverente. Se havia hierarquia, ela a encarnava com naturalidade: as outras queriam ficar sob as patas dela, protegidas e guiadas.

Havia em Nuhtara um gênio peculiar. Era geniosa, tinha as marcas de uma princesa que aceita afeto, mas impõe distância. Não gostava de colo — não porque fosse desligada, mas porque guardava seu afeto em medidas próprias; oferecia carinho sem se submeter, oferecia aconchego sem abdicar da autonomia. Quem cruzasse seu caminho indevidamente podia receber um aviso: rosnados, perguntas felinas, olhos que mudavam de doçura a suspeita em um segundo. Teve gente que vinha à casa com receio dela; Nuhtara respondia com postura, e a casa parecia, por dentro, um reino que ela zelava.

Era guardiã: lá fora, a cadela protegia o mundo; dentro, o domínio era dela. A casa tinha sua assinatura. Visitantes lembravam-se: “ali tem uma gata que olha de cima e decide se você merece carinho.” Era engraçado e impressionante ao mesmo tempo. Ela tinha essa aura de autoridade que não se impunha com gritos, mas com presença.

Houve episódios que ficaram como pequenas epopeias domésticas. Em Ubiratã, lembro de um dia em que ela, numa das suas passagens curiosas pelo quintal, subiu numa calha do telhado e entalou-se ali. O som que vinha era um miado muito baixo, angustiado — e era do telhado, indecifrável. Subi a escada e a vi, presa naquela calha estreita, olhos miúdos pedindo ajuda. Foi preciso tirar a calha para libertá-la; o gesto simples — de mãos sujas e coração apertado — ficou marcado: Nuhtara, imponente na vida cotidiana, também aceitava ser salva. Era cena curiosa porque ela, que era tão comportada em muitos momentos, ousara uma aventura que terminou com a a paciência nossa para salva-la.

Ao longo dos anos, ela acumulou títulos: mãe corajosa, líder dos gatos, guardiã mascarada. Era espécie de mãe de confianças felinas, e sua presença tinha textura — o roçar discreto das patas, o ronronar raríssimo, os olhos que mediam e compunham princípios. Não era exigente, mas demandava respeito; não fazia exigências, fazia presença. Quando simpatizava, era ternura; quando não, era prontidão: ai de quem a enfrentasse.

O declínio começou só nos últimos anos, como se o tempo fosse tirando o vigor dela com uma paciência meticulosa. Aos 16 anos, Nuhtara começou a definhar. Aquilo que antes era autonomia e altivez transformou-se em fragilidade. Tive de lhe dar comida na boca; seus passos ficaram mais curtos, os saltos mais raros. Mas havia uma cena que me acompanhou como lição: Nikita, uma gata que não era filha biológica, filha da Ayllin, assumiu o cuidado com ela. Nikita que, em hierarquias, poderia ter sido desqualificada, mostrou-se cuidadora de verdade; algo de comunidade ficou claro: a casa, povoada por gatos com histórias, cuidava dos seus. Nuhtara, mesmo quando fraca, tinha ao redor a gentileza de quem reconhece quem deu tudo.

Faleceu em Maringá no dia 16 de março de 2016, quase 17 anos depois de seu nascimento. “Vaso ruim não quebra”, dizem, com um sorriso que mistura ironia e ternura; nela, a sentença foi verdadeira: viveu longa, cheia de acertos e recuos, com a marca de uma vida que soube impor limites e distribuir afeição. Quando se foi, deixou um silêncio — não o silêncio respeitador de seus miados, mas o vazio contundente de um lugar que já não se preenche de jeito nenhum. A casa perdeu uma cor, uma cadência, uma escala própria de autoridade felina.

Sinto falta do miado baixo que vinha como metrônomo nas manhãs mais confusas; da maneira como ela deslizava pelos cantos como uma pantera, sempre com a expressão de quem pensa e decide; da sua recusa em ser pega no colo e, ao mesmo tempo, da generosidade com que permitia que pousássemos a mão em seu dorso quando ela consentia. Sinto falta do gesto de mãe que adoçou estranhos — como quando passou a fazer leite para Nino e o alimentou; não por obrigação, mas por uma inclinação que beirou o milagre.

Houve medo em quem veio à nossa casa, respeito em quem a conheceu. Havia também agradecimento, porque numa casa barulhenta, cheia de outras gatas e da vida que os animais imprimem, Nuhtara era a linha que organizava o caos. Era triste ver a cor diminuir; era consolador saber que ela partia tendo sido inteira até o fim — inteira em sua altivez, inteira em sua capacidade de ser mãe e guardiã.

Escrever sobre ela é tentar juntar as pontas de uma vida que foi feita de pequenos reinados. Nuhtara Dahab não foi apenas uma gata siamesa que viveu quase 17 anos; foi uma lição sobre como ser presença: sem exigência, com autoridade; sem abrir mão do afeto, com a condição de que ele fosse oferecido nos termos dela. Ficou o legado — a lembrança dos miados baixos que calavam a casa inteira, a história da catástrofe da calha e do resgate, os contos de suas maternidades e adoções, e a imagem do olhar dela, sempre questionando, sempre avaliando.

Quando fecho os olhos, lembro-a deslizando pela sala, o dorso comprido brilhando, e imagino-a em algum lugar onde reina do jeito que gostava: altiva, com as patas em posição de esfinge, purificando o meio ambiente, decidindo quem merece um afago. E se há saudade, ela vem misturada com respeito: porque Nuhtara ensinou que, numa família numerosa de vozes, é possível haver um silêncio que organiza. Que seja esse silêncio — e essa lembrança — a graça que me toca quando penso nela.

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Fluffy



Há nomes que, ao serem ditos, já trazem dentro de si um universo inteiro — barulhento, desarrumado, cheio de pelos e de risadas. Fluffy era um desses nomes. Nasceu em Curitiba, no dia 5 de junho de 2000, filho da Maya, a nossa Akitora que reinava com passo largo e presença inquestionável. De uma ninhada de sete, Fluffy foi o que ficou conosco. Os outros seis partiram rápido, doados com fila à porta graças à fama materna: havia história demais por trás daquele sangue branco e negro — lembravam-se todos de quando a Maya tinha pegado um ladrão no muro da casa no Pilarzinho, naquele Carnaval em que estávamos fora da cidade. A reputação da mãe abria portas.

Mas Fluffy vinha com um patrimônio próprio: a travessura de nascença. Ele era pilantra num nível quase mitológico. Tinha no sangue a curiosidade inquieta do Border Collie e no corpo a habilidade atlética que fazia dele um saltador e um planejador nato. Se havia um portão aberto, uma brecha, um pedaço de tecido ao vento, Fluffy descobria como ninguém. A casa era seu palco e o mundo, sua plateia.

Lembro bem das primeiras fugas: o portão da garagem não era obstáculo para sua perspicácia. Ele escapava com a naturalidade de quem sai para visitar um amigo, corria até o quintal vizinho — onde havia um cachorro e um gato com quem criara laços de confabulação — e voltava só quando achava adequado. Foram nessas andanças que ele contraiu parvovirose, e por quase uma semana o vimos pendular entre a vida e a morte, prisioneiro de tubos e esperas no veterinário. Era angustiante: cada hora parecia um portal entre o possível e o irremediável. Sobreviveu — e como todo sobrevivente, voltou com uma intensidade ainda maior. O gato vizinho, personagem fiel da sua história, ia todo dia até o nosso portão e chamava por ele, numa insistência comovente que fazia a gente sorrir e ficar alerta. Colocamos grades; batemos o pé; colocamos supervisão. Fluffy aprendeu? Aprendeu um pouco. Mas a regra dele era pintar o sete.

Mudamos para Ubiratã, cidade pequena a uns setenta quilômetros de Cascavel, e Fluffy trouxe com ele o mesmo espírito. Saltava o muro — um muro que para nós parecia enorme, para ele era um degrau — e ia visitar vizinhos, roubava panos de chão com destreza de quem encontra tesouro e, em dias de chuva, não perdia a oportunidade de transformar uma loucura em lambança. A vizinha lavava o fundo do quintal, ele fazia a festa; quem pagava o pato éramos nós, e a bronca vinha com a mesma regularidade das broncas. E quando retornava para casa, sua mãe e irmã mais nova não poupavam as broncas.

Havia algo de carnavalesco na vida daquele cão: a fuga que lembro com mais clareza foi a última grande aventura. Fluffy conseguiu cavar embaixo do portão da garagem e saiu para a rua acompanhado da mãe, a Maya (na época a Mel ainda não havia nascido). Um vizinho, trabalhador de uma cooperativa, nos avisou que os vira andando pela estrada em direção a Cascavel. Tomamos um táxi de um amigo e fomos até lá. Eu e minha esposa saímos do táxi e começamos a gritar os nomes deles como quem tenta afugentar o inesperado. O desespero era verdadeiro — e, como em cena ensaiada, os dois chegaram correndo como dois furacões suados e desesperados, fazendo a maior festa possível ao nos encontrar. Aquela volta, suados e confusos, era a prova máxima de que, por mais que a gente tentasse, os corações deles batiam em sintonia.

Foi tanta travessura e tanta vida que, eventualmente, tivemos de adotar medidas mais duras: colocamos uma corrente, um arame que ia dos fundos até a frente do quintal, uns 40 metros, para limitar suas viagens. Era uma prisão com vista; um espaço suficiente para ele correr, mas que anulava as expedições épicas. Mesmo assim, ali, preso, Fluffy era calor e lama, colo e farra. Era capaz de arrancar do mais sisudo de nós um sorriso com um pulo, com uma careta, com um olho que dizia: “Você sabe que vale a pena.”

E, por baixo da bagunça, havia afeto. Fluffy pulava o muro para ir brigar com os cachorros que passavam na rua, arrumava encrenca, mas se derretia em carinho. Virava a cabeça de lado como quem pede conversa, se enroscava nas pernas, apoiava o queixo como se dissesse: “Agora, por favor, me entenda.” Fazia festa quando chegávamos, usava as patas como catavento, trazia um pedaço de pano como troféu do mundo que ele governava. Foi um desses que ensinou a família a ter paciência, a rir das falhas, a não contar recriminações na mesma moeda que contava graças.

Nos últimos anos, porém, veio a tragédia silenciosa. Uma doença nas pernas começou a imobilizá-las: primeiro as dianteiras, depois as traseiras. Caminhar deixou de ser natural; o corpo, antes instrumento de travessuras, tornou-se campo de batalha contra um mal que os exames não esclareciam. Visitamos veterinários, fizemos perguntas, demos remédios, procuramos explicações que nunca vieram. A incerteza corroía tanto quanto a doença — e talvez mais. Fluffy, que havia escalado muros com a mesma naturalidade com que escalava corações, agora via sua mobilidade se esvair. Foi uma coisa sutil e cruel: a cada dia, uma parte da liberdade ia embora.

O fim foi o mais doloroso e, para mim, o mais difícil de carregar até hoje. Tivemos de tomar a decisão de sacrificar Fluffy — um ato que, apesar de sensato e compassivo diante do sofrimento, deixou feridas abertas. Viveu 10 anos, e a nossa despedida ficou marcada por uma culpa que ainda me persegue. Eu não estava ao lado dele nos últimos instantes. Por motivos que ainda me doem admitir, não acompanhei até o fim. Até hoje peço perdão a ele por essa falha. É um peso que carrego como uma sombra: prometi estarmos juntos, e falhei no compromisso definitivo.

Essa ausência me mudou. Depois de Fluffy, fiz a escolha de estar até o último suspiro com todos os que vieram depois. Quando o fim se aproxima, segurar a pata, ficar ao lado, é a última linguagem de amor que nos é permitida. Hoje, quando toca na minha memória, lembro do Fluffy correndo, do Fluffy suado vindo da estrada, do Fluffy com lama no focinho e uma expressão de arrepiante felicidade. Lembro também do Fluffy deitado, sem forças, olhos suaves pedindo apenas presença — e lembro que falhei naquele momento decisivo.

Mas a vida não se resume a um erro, por pior que ele doa. Há também uma coleção de pequenas vitórias e de humores que se acumularam: as crianças que cresceram ouvindo histórias sobre o Border Collie que não respeitava muros; os convidados que sabiam, ao entrar, que eram vigiados por um olhar astuto; as noites em que Fluffy se acomodava junto de sua mãe como um aceno de proteção. Todas essas memórias me ensinam que o amor pelos animais não é medido apenas em presenças físicas, mas em escolhas: nos passeios que fizemos, nas correntes que colocamos por segurança, nos remédios que tentamos e nas vezes que nos levantamos à noite para ver se respirava.

Fluffy deixou marcas concretas: arranhões na alma, panos manchados que viraram lembrança, vizinhos que ocasionalmente falavam dele quando a rua lembra histórias de outrora. Deixou também uma lição prática: ensinar a cuidar até o fim. Por muitos anos depois, segurei firme na promessa de não abandonar na hora derradeira. E em cada cadela e cada gata que entrou nas nossas vidas depois dele, há um pouco do Fluffy — do jeito que nos obriga a vigiar, de como nos ensinou o valor da presença contínua.

Quando penso nele agora, vejo a imagem dele saltando o muro como se fosse um gesto de liberdade absoluta; vejo a cena dele e da Maya correndo estrada abaixo e depois a alegria da chegada; vejo-o enfiando o focinho em panos limpos e fazendo um carnaval particular na lavanderia vizinha. E, por fim, vejo o Fluffy quieto, cansado, que precisava apenas de uma mão amiga. É essa memória que me corrói e que me transforma; é ela que me faz pedir perdão toda vez que penso na hora em que não estive ao seu lado.

Escrever sobre Fluffy é, portanto, aceitar o calor da lembrança e a frescura da culpa. É contar das travessuras com o mesmo afeto com que conto da dor, porque ambos pertencem ao mesmo tecido. Ele foi pilantra e leal, parceiro de aventuras e, por fim, vítima de uma doença desconhecida até então. Viveu dez anos — dez anos intensos, barulhentos e cheios de vida. E cada um desses anos foi matéria-prima para as histórias que ainda contamos.

Hoje, quando há um silêncio na casa e a rua parece vazia, eu me pego imaginando o som de seus latidos que eu ralhava com ele pelo exagero, o sopro de sua respiração, o mesmo dos velhos tempos que jamais imaginou que uma cadela e seu filho pudessem domar uma vizinhança. Fluffy foi tudo isso: coragem em forma de cachorro, pilhéria em forma de corpo, amor em forma de latido. E se há uma dívida que guardo, ela é simples e humana: o perdão que peço por não ter estado até o fim. Ainda assim, sei que de alguma maneira ele me perdoou — porque Fluffy sabia, melhor que muitos humanos, a arte de viver e de acolher, até as nossas fraquezas.

No balanço das coisas, ele me deixou menos duro e mais pronto para ficar. E se a saudade às vezes corta como navalha, ela também aquece: porque o que foi vivido com ele foi verdadeiro, e porque, na curva das lembranças, há sempre uma imagem que me cura — a do Fluffy vindo em nossa direção no breu da estrada, suado, exausto e feliz, porque no final das contas sempre escolhia sempre estar conosco.

domingo, 26 de outubro de 2025

Nikita

 

Há rostos que se guardam não pelo que dizem — que, no caso dos gatos, é pouco — mas pelo modo como ocupam um corpo e um espaço na nossa rotina. Nikita veio ao mundo em Ubiratã, em 17 de janeiro de 2004, junto com as irmãs Cherie e Corina, filhas de Ayllin — a Biba —, que era um tipo de mãe capaz de ensinar carinho só com o escorrer dos pelos e o gesto de lamber. Desde cedo Nikita foi desse tempo de doçura que faz a casa virar lar: peluda, em grande parte branca, com as costas tingidas de um bronze delicado e um bigodinho que a tornava uma figura ímpar — a amiga trovadora Carolina Ramos, sempre carinhosa, dizia que aquele bigode lembrava Fernando Pessoa, e havia na graça da comparação uma ternura que a descrevia bem.

Nikita era dócil com todos; tinha, ao mesmo tempo, uma preferência que era quase um santo ofício: o irmão mais novo, Nickinho. Ver os dois era um modo de entender o que significa pertencimento. Frequentemente estavam enroscados, dormindo como se um só corpo respirasse. Quando separados, um miadinho sussurrado — tão baixo, tão íntimo — vinha de Nikita chamando por ele, como se convocasse um pequeno sinal de volta ao ninho. Aquilo não era só saudade: era um ritual de pertencimento, um idioma de afeto que só quem vive perto percebe. Muitas tardes eu me via com os dois acomodados em minhas pernas — e, nesse peso quente, havia o mundo sendo restaurado a cada respiração sincronizada.

Mudanças são provas que pedem coragem. Quando nos mudamos para Maringá, Nikita veio conosco; Nickinho, porém, ficou em Ubiratã sob os cuidados de outra pessoa. Foi o primeiro grande corte. Para um gato cujo universo cabe numa vizinhança de cheiros e corpos, separar-se do irmão é como perder um norte. Quando, mudamos de cidade, Nikita reagiu como quem se refugia de tudo que a ameaça: escondeu-se debaixo de um móvel e não quis saber de sair. Deixávamos comida e água próximos, na esperança de que o tempo reabastecesse a coragem. Foram semanas de espera, de ansiedade e passos suaves, até que, um dia, ela saiu — saiu com o andar de quem foi magoada e com um miado rouco que cortava o silêncio do corredor: chamava pelo irmão com aquela voz que sempre fora um fio para trazê-lo de volta.

A depressão felina tem texturas parecidas com a humana: é quietude que pesa, retraimento que parece um sopro frio. Nikita tinha na perda do irmão uma ferida que lembrava a de sua mãe Ayllin quando esta perdeu o irmão Bibo — laços que se repetem de geração à geração, como um mapa de feridas herdadas. Nesses momentos eu a abraçava, colocava-a junto a mim, falava-lhe palavras que talvez não entendessem em sentido literal, mas que se traduzem em tom e calor: a voz acalma tanto quanto o colo. Ela não precisava compreender a gramática do afeto — foi suficiente a minha aura de calma e cuidado; isso a fez acostumar-se de novo aos passos do mundo.

A vida seguiu, e Nikita cresceu como cuidadora e receptáculo de ternura. Adotou o Branco como companheiro quando as casas e as histórias pediram novos alinhamentos; cuidou da mãe Ayllin quando a velhice bateu; esteve ao lado da Lady, do Nuhtara, do Nino. Havia nela uma inclinação natural para o zelo — não por imposição, mas por temperamento: o corpo de Nikita sabia dar calor, ajeitar um pelo, aceitar um corpo pequeno no seu colo. Ser assim não é trivial; é profissão de bondade, é escolher estar perto em vez de fugir.

Os anos passaram com a suavidade e a dureza que o tempo costuma impor. Nikita foi longe: foi a última das gatas de uma época que parecia infinita. Aos quase dezessete anos, o corpo começou a trazer sinais de cansaço: problemas que se acumularam, noites mais longas de descanso, movimentos mais lentos. A velhice chegou como um visitante que não admite negociação. No dia 26 de abril de 2021, com pouco mais de 17 anos de idade, Nikita deu o último suspiro — e fechou-se um ciclo que não cabe só em data, mas em lembranças que ocupam lacunas da casa.

Fica em mim, antes de tudo, a imagem que talvez melhor a resuma: Nikita e o Nickinho sempre juntos, entrelaçados como se o mundo inteiro coubesse naquele abraço, ou então a visão dela, já idosa, acomodada na minha perna enquanto a televisão fazia barulho e o quarto era uma ilha de calor. Fica também o modo como ela se dava com todos: sem hostilidade, sem pressa. Permanecem o bigodinho de Pessoa, o bronze nas costas, a pelagem branca e farta. E fica o aprendizado de que, às vezes, um gato nos mostra a persistência do afeto: que ele é humilhador de distância e resistente ao abandono.

A saudade é um território que reencena cenas. Às vezes, quando cruzo o corredor, espero ouvir um miadinho baixinho — esse chamamento que ela reservava ao irmão — e percebo que o quarto está mais silencioso; percebo também que as pernas sentem falta do peso dos corpos que uma vez acomodaram-se ali, o calor de seu corpinho. O corpo que nos deixa tropicaliza a memória: pequeno gesto vira prece, um ronron vira lamento e um amassar de pão vira liturgia. Nikita, com sua doçura simples e sua maneira de cuidar, deixou mais do que ausência: deixou lições sobre como se ser paciente com quem chora por dentro, sobre como o afeto pode curar pequenas mortes cotidianas.

Quando penso em Nikita, lembro de afetos simples que ensinam: a paciência da espera enquanto ela estava debaixo do móvel; o som rouco do seu chamado; o instante cálido em que, já idosa, descansava nas minhas pernas e a paz voltava. Lembro-me de que ela foi uma guardiã de laços — da mãe, das irmãs, das gatas e até mesmo da cadela —, e que, no fim, foi ela quem me ensinou, com singeleza, que o amor verdadeiro é persistente. Por isso, ao lembrar, eu sorrio com uma sombra de lágrima: porque amar é aceitar que a dor da perda faz parte do preço de ter tido alguém tão inteiro ao nosso lado.

Nikita foi doçura. Nikita foi cuidado. Nikita foi memória que se instalou em mim e que, quando vinha a noite, me lembrava que a ternura tem nomes e faces; que ela ensina, mesmo em silêncio, que sempre vale a pena servir o colo. E se há consolo, é só isso: ter tido o privilégio de ser o lugar onde ela escolheu pousar. Até sempre, Nikita — que teu bigode de Pessoa encontre agora novos versos para rimar em seus miados.

sábado, 25 de outubro de 2025

Baby

 

Morei numa cidade pequena e a vida me ensinou cedo que as pessoas mudam de endereço, de roupa, de humor — raramente, porém, de memória. Ubiratã tem um jeito de cidade que guarda nomes nas esquinas e lembranças nos muros: lá, entre ruas de terra e calçadas gastas, nasceu Baby, uma gata que parecia carregada de segredos e de pressa para ser amada.

Baby veio ao mundo em 2002, e já no começo sua vida foi uma oscilação entre portas que se abririam e portas que se fechariam. Passou por duas famílias diferentes antes de chegar até nós. Não demorou para que a palavra “agressiva” acompanhasse seu rastro como se fosse um daqueles rótulos que as pessoas colocam sem muita paciência. “Ela é agressiva”, diziam. E a solução rápida quase sempre é o afastamento: realocar, doar, procurar outro colo. Foi oferecida a nós que tínhamos várias gatas e, achando que nenhum animal é simplesmente “agressivo” por natureza, eu pedi duas semanas. Duas semanas para entender. Duas semanas para tentar. Duas semanas para que ela aprendesse que talvez havia um lugar em que não precisasse ficar na defensiva o tempo todo.

Baby era, acima de tudo, uma gata que estava só. Solidão vira casca dura; às vezes a casca corta. Sua agressividade não era munição, era defesa — defesa de um coração pequeno que nunca aprendeu a confiar. Em duas semanas ficou claro: ela não era difícil, era ferida. E as feridas aceitam remédio e cuidado, se alguém está disposto a passar a mão.

Ficou comigo quase dois anos. Quase dois anos em que aprendi o mapa de seu corpo pelo tato e em que ela me ensinou a geografia do afeto felino. Tinha um costume que me era tão íntimo quanto um segredo: deitar enrolada em meu pescoço. Dormia ali como quem se aninha em um oásis — o seu sol, o meu calor, a minha respiração como embalo. Era um ritual noturno que desmontava barreiras: enquanto apoiava seu corpo, o mundo lá fora deixava de existir. Aquela cena repetida noite após noite fez com que eu entendesse uma verdade simples e antiga: quando aceitamos o outro, o outro cede e a ferida começa a cicatrizar. 

Com o calor das noites compartilhadas, Baby mostrou outra face: extremamente carinhosa comigo, terna e exigente, com um jeito único de pedir atenção. Havia entre nós pequenos códigos — um miado mais longo quando queria carinho, um empurrãozinho com a cabeça quando desejava que eu a percebesse. Mas sua generosidade afetiva tinha limites. Em casa moravam outras dez gatas, e Baby, como uma personagem que insiste em manter uma solidão escolhida, não se dava bem com elas. Não era maldade, era medo: muitas companhias, poucos entendimentos. Assim, dividimos o tempo com precisão geográfica e afetiva — tardes e noites comigo; manhãs no quintal, geralmente no muro, observando a rua.

A figura dela no muro era a imagem que mais me ficou: Baby de olho na vida que corria lá fora. Havia algo nobre naquele comportamento — não uma vontade de escapar, mas um interesse por tudo que acontecia além do quintal. Observava carros, pessoas apressadas, crianças correndo, pássaros em busca de migalhas. Era como se sua alma quisesse mapear o mundo sem precisar atravessá-lo, como se o muro fosse uma vitrine e a rua, uma novela que ela assistia com toda a atenção felina.

Os dias passaram, e dois anos preenchidos por pequenos rituais, ronronares e olhares, teceram nossa intimidade. Aprendi a distinguir os tipos de miado: o de pedido, o de indignação, o de sono. Ela, por sua vez, aprendeu a confiar, a se deixar ser pega sem tensão. Veio a época do carinho aberto, das corridas, dos saltos acrobáticos, das janelas como palcos. Às vezes dormia sobre o meu peito; outras, era dona absoluta do travesseiro. Mas nunca, por completo, abandonou seu posto no muro. De tarde, lá estava ela, recortada contra o céu do interior, uma sentinela que tomava conta de sua rua e de seus pensamentos.

E então houve um dia que mudou tudo, do tipo que a gente não consegue arquivar sem sentir um nó na garganta. 20 de agosto de 2004. Naquele meio de tarde — os detalhes tranquilos de um dia comum que, sem aviso, se tornam irreversíveis — Baby saiu para a rua. Talvez um raio de sol no asfalto, talvez um movimento que chamou sua atenção, talvez um impulso que nem sempre precisa razão. As ruas têm armadilhas para quem não sabe dos perigos humanos; carros passam com pressa, máquinas que não conversam com corações.

Um carro a atingiu. Foi instantâneo. A vida, que até então fora uma sucessão de gestos singelos e certeiros, se apagou na rua, sem dramatização, com uma crueldade que asfalto e metal impõem a seres que atravessam sem ter voz. Morreu na mesma cidade onde nascera, naquele mesmo chão que abrigara suas observações matinais. A notícia chegou com um baque abrupto, profunda, cheia de dor. Peguei-a no colo e corri para dentro de casa e coloquei-a suavemente na mesa, alucinado, acreditando que ainda havia um sopro de vida em seu corpinho frágil. Esperança vã. Ela partira para sempre.

Na casa, o espaço onde ela dormia enrolada no meu pescoço ficou vazio como uma página em branco que nunca mais se preencheria com o mesmo calor. O muro perdeu a vigilante. As tardes, sem seu olhar atento, pareceram menos densas. O peito ficou engasgado por miados que não voltariam. Mas a vida segue — e também se multiplica. Baby deixou duas filhas: Polly, nascida em 2003 e que viveu até 2011, e a irmã Lady, também nascida em 2003 e que viveu até 2015. É consolador, de uma maneira humilde, pensar que parte dela seguiu adiante, que seu jeito e qualquer traço de sua coragem e fragilidade se insinuaram nas filhas e continuaram a bordar memórias.

Lembrar de Baby é revisitar um aparelho de emoções que ensina sobre a tênue linha entre agressividade e medo, entre desconfiança e desejo de aconchego. É lembrar que o que muitos chamam de “dificuldade” muitas vezes é apenas um pedido de amor mal traduzido. É lembrar que animais não têm vocabulário das nossas justificativas, mas têm corpo, calor e rupturas que pedem mãos pacientes.

Em Ubiratã, no quintal onde ela fazia suas rondas matinais, ainda há resquícios do tempo em que uma gata se fazia senhora de seu muro. Vislumbro ali e imagino Baby acomodada, a cauda enroscada, os olhos fixos na rua de sempre. Imagino também as noites em que a casa cheirava a lençóis, ao som do meu próprio sono sendo embalado por um ronron que se tornara trilha sonora íntima. E quando penso na estrada curta da vida dela — dois anos apenas — sinto que, embora breve, houve intensidade; um desses amores que não se mede em anos, mas em precisão de presença.

Contar essa história é também um ato de resistência contra o esquecimento. Porque, para toda perda, há um trabalho de memória que faz sentido quando se tenta colocar em palavras o que foi um afeto. Baby não foi apenas “aquela gata agressiva” que alguém se apressou em rotular: foi criatura complexa, mãe, companheira de madrugada, guardiã de muro, pequena arqueóloga do mundo que buscava, com unhas e ronronares, um lugar seguro.

Fico com as imagens: Baby enrolada no meu pescoço num sono profundo; Baby no muro, moldada contra o céu azul de Ubiratã; o corpo frágil mas decidido, que buscava abrigo; e a ausência, que chegou como um carro que corta o fio da vida sem pedir licença. Fico também com as filhas, que levaram alguma coisa dela adiante, e com a ideia de que nossos afetos — mesmo quando curtos — criam consequências duradouras.

Há, por fim, um aprendizado que essa história me deu: não há pressa para julgar. Às vezes, a chamada “agressividade felina” é um pedido de colo, e aquele colo muda trajetórias. As duas semanas que pedi viraram dois anos de companhia e um modo de reinserir confiança onde antes havia apenas vigilância. Que outras mãos possam, ao encontrar um “gato difícil”, lembrar dessa lição: que o gesto de tentar pode ser a diferença entre uma vida que floresce e outra que se fecha.

Baby se foi, mas não totalmente. Vive nas noites quietas em que sinto falta do peso dela no meu pescoço; vive nas filhas que continuaram; vive na lembrança das tardes em que, juntas, observávamos a rua. E em Ubiratã, onde nasceu e morreu, há um muro que já não guarda o mesmo vigia — mas guarda a história de uma gata que, por um espaço de tempo, aprendeu a confiar e a ser amada.

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Maya

(Do meu livro "Minhas irmãs de quatro patas")
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Foste uma amiga, uma irmã,
foste uma luz… o calor.
No despertar da manhã
foste simplesmente… amor.

 Há lembranças que se enraízam como árvores antigas: elas crescem, fazem sombra e, quando o vento passa, deixam cair uma folha cuja textura a gente reconhece sem precisar olhar. Maya é uma dessas árvores na minha memória — uma presença que ocupou quintais, ruas, abraços e um pedaço enorme do nosso coração. Nasceu em São Paulo, capital, em 1997. Veio da mão de uma amiga, entregue como quem confia a chave de casa a alguém que sabe cuidar. E cuidar, com ela, foi aprender a grande lição de que os animais chegam para ensinar a amar.

No começo éramos ruins em cuidar de cachorros; confessar isso hoje é confessar uma ingenuidade que me envergonha e encanta ao mesmo tempo. Eu cheguei a fazer um cartaz numa venda perto de casa: doava-se a cadela, tomada numa mistura de desespero e de inexperiência. Coloquei-o ali como se arrancar o problema resolvesse também o afeto que já começava a crescer. Na manhã em que um senhor apareceu interessado, Maya chorou como quem pede para não ser trocada por um ponto final. Chamou a manhã inteira — um choro que parecia questionar a nossa lógica.

Quando um senhor tentou se aproximar, ela adotou uma postura defensiva e quase atacou; ele, visivelmente assustado, desistiu. Foi nesse instante que entendemos: ela não era de dar, era de ficar. E ficamos. Mais tarde encontramos o senhor novamente — nas ruas do bairro — e, Maya, que na manhã anterior parecera pronta a atacar, lambeu a mão dele com a mesma simplicidade com que dá à vida um sopro de perdão. A natureza dela tinha essa contradição doce: firmeza e ternura, proteção e entrega.

Maya era grande, uma mistura nobre entre Akita e Pastora Belga Albina. Eu brincava que ela era uma “Akitora” — um nome que juntava o porte imponente com a pelagem clara que lembrava neve. Majestade era, aliás, uma palavra que lhe caía bem. Caminhava como quem foi feita para ocupar espaço: passos largos, cabeça erguida, olhar que media situações. E ao mesmo tempo que era imponente, era dócil como poucas criaturas que já conheci. As crianças do bairro a adoravam. Entravam no quintal para brincar, deitavam-se ao lado dela, corriam e riam, e Maya aceitava tudo com paciência de rainha misericordiosa.

Havia, porém, um ódio irrefreável por bêbados que passavam em frente ao portão. Não tolerava esse tipo de presença; o latido que soltava nessas ocasiões não era infantil, era uma reprimenda, quase uma convocação à ordem. Quando havia algazarra de cachorros na rua, era Maya quem impunha silêncio: bastava um latido seu que as vozes mais altas pareciam se dissolver. Em todas as casas por onde vivemos — Taboão da Serra, Curitiba, Ubiratã e finalmente Maringá — ela se tornou referência para os cães da região: Maya latia, e o bairro escutava.

Em Curitiba, teve um episódio que virou lenda entre os vizinhos. Numa época em que estávamos viajando, houve uma invasão: um ladrão subiu o muro da casa para roubar. Maya pegou esse ladrão no muro mesmo. Simples assim. Haviam rastos de sangue do ladrão no muro, com certeza no desespero de tentar se salvar. Não foi uma cena de filme; foi a realidade exemplar de uma cachorra que assumiu seu posto de guardiã com firmeza. O nome dela correu as ruas: “a Maya pegou o ladrão” — e a sensação foi de uma vitória coletiva. O mesmo ladrão, sabíamos depois, havia roubado outras casas naquela sequência de dias. Mas quando encontrou a Maya na frente, a história mudou. Ela era destemida quando necessário.

Era também uma mãe dedicada. Cruzou com um Border Collie em Curitiba e teve sete filhotes. A casa encheu de patas, de olhos curiosos e de filhotes que tinham fila para adotá-los. Ficamos com um deles; os outros foram-se rápido, porque quem a conhecia sabia que ter um filhote dela seria um privilégio. Ser mãe foi mais um dos papéis que ela desempenhou com naturalidade: havia nela uma mistura de disciplina e afeto, um código que os filhotes aprenderam rápido.

As caminhadas com ela eram, na verdade, passeios em que ela nos levava. Entre risos, sempre digo isso: era ela quem ditava o ritmo, quem escolhia o caminho, quem parava para cheirar a vida. Numa dessas ocasiões lembro de um dia em que ela disparou, e mesmo presa ao enforcador — que eu segurava firme — arrastei-me até colidir com uma árvore. Saí daquele encontro com o joelho raspado e o riso envergonhado, enquanto Maya, impassível, já queria seguir adiante. Era fiel: fazia o que queria, mas fazia junto.

Inteligente ao extremo, ela aceitava uma trapaça uma vez — talvez duas — mas não mais. Eu podia enganá-la uma vez, e ela ficaria olhando com curiosidade; na segunda vez, o olhar era de reprovação quase cômica, como se dissesse: “Qual é? Acha que sou tonta e caio outra vez?” Tinha um senso de justiça fantástico. Essa inteligência fazia dela não só uma companhia, mas uma interlocutora silenciosa: seus olhos avaliavam, ponderavam, perdoavam ou censuravam de modo claro.

O tempo foi passando e, por anos, Maya foi nossa sombra, nossa mesa redonda, nossa segurança. Em 2012 sua saúde começou a declinar. Ela ficou, aos poucos, mais quieta; os passeios diminuíram, as corridas tornaram-se raras, e ela passou a deitar mais tempo do que antes. Os sinais da velhice vinham com a mesma dignidade com que vivera: sem grande dramatização, apenas um corpo pedindo repouso. No dia 19 de abril de 2013, em Maringá, ela partiu: 16 anos que pareciam ter passado tão depressa e, no entanto, deixavam uma lenta bagagem de saudade.

Maya morreu de falência dos órgãos. Foi um fim que doeu, não apenas pela violência do corpo que se entrega, mas pela concretude da despedida depois de tantos anos de presença constante. Ela deixou descendentes: Fluffy, um Border Collie que morreu aos 10 anos em Ubiratã por doença desconhecida, e Mel, que viveu até 2019 e partiu aos 16 anos em Maringá. A linhagem dela seguiu, em parte, como quem carrega a tocha adiante.

Ainda hoje, quando fecho os olhos, a lembrança de Maya vem com cheiro de grama, de poeira da estrada e de pelo macio. Vejo sua cabeça grande encostada na minha perna, o olhar que pedia nada e dava tudo, as crianças correndo ao redor, e lembro do cartaz que pus na venda, uma prova da nossa inexperiência, e da lição que isso nos deu: não se dá alguém como Maya, ela se conquista e te conquista de volta.

Sinto falta das pequenas coisas: o jeito que ela levantava o olhar para pedir um pedaço do comida, como acompanhava cada passo quando estávamos no quintal, como deitava de lado para que as crianças subissem e se aninhassem. Sinto falta de vê-la chupando manga que pegava de nossa árvore onde moravamos, e não é que a danada pegava sempre as melhores mangas. Sinto falta das tardes que os nossos gatos brincavam com ela no quintal de casa, fazendo-a de boba. Geralmente vinha pra mim, chorosa, com um arranhado no corpo, de algum gato provavelmente. Sinto falta da segurança que a presença dela trazia nas noites, quando a casa parecia menor por fora mas completa por dentro. Sinto falta do respeito que impunha e do conforto que oferecia.

Em dias de vento forte, eu imaginava Maya no portão, vendo os bêbados passarem e decidindo, com um latido seco, que aquilo não ficaria ali. Em dias de sol, a via sendo acariciada pela luz, um corpo branco que brilhava como se tivesse pegado o próprio verão. E quando me lembro da sua inteligência e do seu humor — da soberania com que assumia as manhas e o humor com que aceitava as regras — percebo a sorte que tivemos em tê-la por perto.

Há uma saudade que é como um caminho conhecido: a gente passa por ele sempre que quer encontrar uma presença. Para mim, essa estrada leva direto a Maya. Às vezes, preso num dia comum, me surpreendo sorrindo ao lembrar da cena em que ela lambeu a mão do senhor que antes despertara seu instinto de defesa, ou do dia em que mordeu o ladrão ou ainda da vez em que a casa inteira ficou em silêncio por causa de um único latido. Essas memórias são pequenas vitórias contra o esquecimento.

Maya era muito mais do que a soma de suas ações; ela era um personagem que alterou nossa narrativa familiar. Nos ensinou a cuidar, nos policiou, fez-nos rir e, sobretudo, foi um porto. Depois que se foi, aprendemos a medir espaços: um banco na sala que parece maior, um canto do quintal que ecoa as patas, uma coleira que agora é só lembrança. A vida, com sua dureza e sua ternura, seguiu — mas com a marca dela cravada em cada gesto de cuidado que depois demos.

Escrever sobre Maya é trazer à tona não só a história de uma cadela exemplar, mas a própria história de quem aprendeu com ela. É confessar que já fomos melhores e piores, e que, diante de um animal assim, o melhor de nós e também a nossa impotência frente às vicissitudes da vida aparece. É também uma forma de agradecer: por ela ter escolhido ficar quando nossas mãos hesitaram, por ter sido dócil com as crianças, implacável com ladrões, e por ter ensinado que a lealdade é prática diária e silêncio cúmplice.

Hoje, quando falo dela, lembro-me da akitora, a raça que lhe denominei. Em seu nome, há reverência. Em qualquer lembrança, há saudade. Mas há também consolo: ela viveu muito, viveu bem, e deixou herança material e espiritual. Fluffy e Mel foram pedaços do legado; as histórias que lembramos continuam a circular; e dentro de nós, o modo de amar transformado por ela segue ativo.

Maya era majestade e afeto, cidade e quintal, guarda e companhia. Era o tipo de presença que nos ensina por imitação: você olha para ela e entende como se cuida, como se espera e como se protege. Sua vida foi um mapa de gestos que inaugurou muitos de nossos modos de agir com os animais. E a saudade — ah, a saudade — é essa árvore que inclino a cabeça para lembrar e, geralmente, chorar, um choro triste e um choro alegre. É também um carinho antigo que me aquece inesperadamente em dias frios.

Se penso em algo final que ela me deixou, é a convicção de que cuidar transforma. Fomos péssimos no início, aprendemos no caminho, e Maya foi sempre generosa com nossas falhas. Quando morreu, restou o aprendizado e o espaço que nunca mais seria igual. Hoje, aqui sentado, escrevo e vejo o sol atravessando a cortina, e, por um segundo, o brilho parece o mesmo do pelo dela. Sorrio, deixo a saudade me dominar — porque saudade, no final das contas, é prova de que houve amor, e que esse amor valeu cada passo que ela nos fez a dar ao seu lado.

Oh, minha querida Maya. Que saudade!!!

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Tudo o que sobe, desce

Ivan tinha 47 anos e um histórico invejável de evitar aventuras. Sua vida era previsível, organizada e, principalmente, segura. Ele não andava de patinete, não pedalava bicicletas, não corria riscos desnecessários. Sua maior ousadia, talvez, tivesse sido trocar o café por chá de camomila na tentativa de combater a gastrite. Mas, naquela manhã ensolarada, o destino – ou talvez uma casca de banana – decidiu que Ivan precisava de um pouco de emoção.

Era uma terça-feira comum, e Ivan ia pela ladeira em direção à quitanda do bairro. Ele havia decidido que queria maçãs. Caminhava com sua típica postura ereta, carregando uma sacola de pano dobrada sob o braço e resmungando mentalmente sobre a quantidade de patinetes espalhados pelas calçadas. Era o tipo de homem que acreditava firmemente que a cidade estava em decadência.

Foi então que aconteceu.

No meio da ladeira, uma casca de banana – que parecia ter sido estrategicamente colocada ali por um gênio do caos – brilhou sob o sol como um aviso divino. Ivan, distraído, nem teve tempo de reagir. O pé direito encontrou a casca, e o mundo virou de cabeça para baixo. Ele escorregou com tamanha elegância que poderia até ser confundido com um número de balé, se não fosse o grito desesperado que ele soltou enquanto seus braços agitavam-se como hélices descontroladas.

— AAAAAAAHHHH!!

A queda, porém, não foi o fim. Foi apenas o começo.

Ivan despencou de costas, mas, em vez de encontrar o chão duro e impiedoso, encontrou algo ainda mais improvável: um carrinho de mercado. O carrinho estava parado ali, aparentemente abandonado, carregando apenas um saco de batatas e alguns tomates já levemente amassados. A sorte, se é que podemos chamar assim, fez com que Ivan caísse diretamente dentro dele, encaixando-se como uma peça de Tetris em uma jogada perfeita.

O impacto fez o carrinho ganhar vida. Ele começou a descer a ladeira com uma velocidade assustadora, impulsionado pelo peso de Ivan e pela força da gravidade que parecia decidida a não lhe dar trégua.

— PAREM ESSE NEGÓCIO!! — berrou Ivan, agarrando-se às laterais do carrinho como se fosse um piloto de Fórmula 1 em uma curva perigosa.

Mas o carrinho não parou. Pelo contrário: ele parecia ganhar velocidade a cada metro. A primeira vítima foi uma bicicleta estacionada no meio-fio. O carrinho colidiu com ela, arremessando-a contra uma árvore e fazendo soar um "tinhóin" metálico que ecoou pela rua.

— FOI SEM QUERER! — gritou Ivan para ninguém em particular.

Em seguida, vieram as latas de lixo. Cinco delas, enfileiradas como se estivessem participando de uma competição de queda sincronizada. O carrinho as atingiu em cheio, espalhando sacos de lixo, cascas de frutas e algo que parecia ser um peixe malcheiroso por toda a calçada.

— Isso não está acontecendo... — Ivan murmurou enquanto o caos se desenrolava ao seu redor.

Mais abaixo, um grupo de crianças brincava com patinetes. Quando viram o carrinho descendo como um meteoro descontrolado, fugiram gritando, abandonando as patinetes no caminho. O carrinho passou por cima de duas delas, que voaram como projéteis, atingindo uma barraca de pastel na esquina. O pasteleiro deu um salto para trás, derrubando uma bandeja cheia de pastéis quentinhos no chão.

— ME DESCULPA, PASTEL! — gritou Ivan, já sem qualquer esperança de controlar a situação.

A ladeira parecia interminável. Cada metro trazia uma nova catástrofe. Ivan passou por um cachorro que, assustado, começou a persegui-lo, latindo como se o carrinho fosse um invasor de outro planeta. Logo atrás vinham duas senhoras segurando sombrinhas, gritando:

— SOCORRO! TEM UM LOUCO DESCENDO A LADEIRA!

E então, como se o destino tivesse preparado um grand finale, Ivan viu o fim da ladeira: uma construção. Uma obra em andamento, cheia de andaimes, sacos de cimento e, claro, uma poça de lama imensa bem no centro. Ele tentou gritar novamente, mas só conseguiu soltar um som abafado, como um suspiro de derrota.

— Não... na lama, não...

O carrinho atingiu um pedaço de madeira, saltou no ar como se fosse um carro de ação em um filme de Hollywood e aterrissou exatamente na poça de lama. O impacto foi glorioso. Lama voou para todos os lados, cobrindo Ivan da cabeça aos pés e criando uma espécie de coroa marrom em sua careca reluzente.

Por alguns segundos, houve silêncio. O cachorro parou de latir. As senhoras com sombrinhas chegaram, arfando, e olharam para Ivan com uma mistura de horror e pena. Uma das crianças apontou e começou a rir.

Ivan, ainda deitado no carrinho, coberto de lama, levantou uma mão trêmula e disse, com a voz mais digna que conseguiu reunir:

— Alguém pode me trazer uma toalha?

E foi assim que Ivan, o homem que evitava aventuras, tornou-se a lenda da ladeira. O carrinho de feira foi recuperado por seu dono (que nunca explicou por que o havia deixado ali), e a história foi contada por semanas no bairro. Ivan, por sua vez, decidiu que talvez fosse melhor começar a fazer compras em outra quitanda.

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Passarinho na Gaiola

 Passarinho na Gaiola
Privado da liberdade
lindo pássaro cantador,
na gaiola, de saudade,
canta triste a sua dor…
Maria Helena Ururahy C. Fonseca
(Angra dos Reis/RJ)

Oprimido na gaiola,
lamentando a escravidão,
o sabiá cantarola
para o algoz sem coração.
Ruth Farah Lutterback +
(Cantagalo/RJ)

Paulo era um homem solitário que encontrava alegria em um pequeno passarinho que mantinha em uma gaiola. O passarinho, um canário de penas amarelas brilhantes, era sua companhia mais fiel. Paulo gostava de ouvir seu canto suave e melodioso, especialmente nas manhãs ensolaradas, quando a luz do dia filtrava-se pela janela, iluminando sua pequena casa.

Todos os dias, ao acordar, se aproximava da gaiola e falava com o passarinho, que respondia com seu canto. Para Paulo, aquele som era como um alívio à solidão que o cercava. Ele acreditava que, mantendo o passarinho preso, estava garantindo sua segurança e, assim, poderia desfrutar de sua música sempre que quisesse.

Certa tarde, Ricardo, um amigo de Paulo, decidiu visitá-lo. Eles conversaram sobre a vida, sobre as lembranças de antigamente e, é claro, sobre o passarinho. 

– Você tem um passarinho lindo, Paulo. Deve ser maravilhoso ouvir seu canto. - comentou Ricardo, tomando um gole de café.

– É verdade! - respondeu Paulo, com um sorriso. – Ele é minha companhia. Eu gosto de ouvi-lo cantar.

Ricardo franziu a testa, surpreso. 

– Mas por que deixá-lo preso? Para ouvi-lo cantar? Isso não parece certo. Ele tem asas, Paulo. As aves devem voar livremente.

Paulo hesitou. 

– Mas se eu soltar, ele pode fugir. E eu ficaria sozinho novamente.

– Mas você já percebeu que o canto dele não é de alegria, mas de tristeza? Ele está preso, e seu canto reflete isso. Assim como nós, humanos, temos pés para andar, as aves têm asas para voar. Ninguém gosta de estar preso. E se fosse você preso em uma gaiola, sem poder sair para andar? Como se sentiria?

As palavras de Ricardo ecoaram na mente de Paulo. Ele nunca havia pensado dessa forma. Naquela noite, enquanto o passarinho cantava, ele começou a prestar atenção ao tom de sua música. Era verdade: havia uma melancolia em seu canto que antes não percebera. O coração de Paulo apertou-se com a dor de compreender que, mesmo cuidando do passarinho, estava privando-o de sua liberdade.

Paulo ficou em um dilema. Ele amava o passarinho e queria que ele fosse feliz, mas o medo da solidão o impedia de agir. No entanto, a consciência pesada começou a se tornar insuportável. Com um suspiro profundo, decidiu que precisava fazer o que era certo. 

Com tremor nas mãos, abriu a gaiola.

O passarinho hesitou por um momento, mas assim que viu a porta aberta, voou para fora em um esplêndido bater de asas. Seu canto mudou imediatamente, não era mais triste, mas alegre e vibrante. 

Paulo olhou enquanto o pequeno ser alado disparava para o céu, sentindo uma mistura de alívio e dor. Ele havia feito o que era certo, mas agora sentia-se mais sozinho do que nunca.

Nos dias que se seguiram, Paulo se fechou em seu mundo. Olhava pela janela, desejando que o passarinho voltasse, mas sua casa parecia mais silenciosa do que nunca. A ausência do canário o envolveu em uma profunda tristeza. Ele se afastou dos amigos, deixou de sair, mergulhando em um torpor.

Porém, algo inesperado aconteceu. Um dia, enquanto Paulo olhava para a janela, ouviu um canto familiar. Seu coração disparou quando viu o passarinho pousando na borda da janela, cantando alegremente como nunca antes. Era como se o sol tivesse surgido novamente em sua vida.

"Você voltou!", exclamou Paulo, surpreso e emocionado. Ele se aproximou da janela e, com lágrimas nos olhos, disse: "Desculpe-me por ter te prendido. Eu não queria que você se sentisse triste."

O passarinho parecia entender. Ele cantou ainda mais alto, e Paulo sentiu que aquelas notas eram uma resposta ao seu arrependimento. O canto do passarinho ressoava como uma melodia de perdão e amizade. 

A cada manhã e cada final de tarde, o passarinho voltava, enchendo o ar com sua música.

Paulo começou a sair de casa, encontrando um novo propósito. Ele cuidava do jardim, plantava flores e desfrutava da natureza ao seu redor. O passarinho voava pelo quintal, pousando nas árvores e cantando, e Paulo sempre o esperava na janela.

A liberdade do passarinho trouxe vida nova a Paulo. Ele entendia, finalmente, que a verdadeira amizade é baseada na liberdade e no respeito. E assim, o passarinho e Paulo formaram um laço que transcendeu as paredes da casa, celebrando a beleza da liberdade e a alegria da companhia.
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A liberdade e o respeito pela vida dos outros sempre são recompensados. A verdadeira amizade não se baseia na possessão, mas na capacidade de permitir que o outro seja livre e feliz.

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

O Sentido da Vida

Criada com Microsoft Bing

 PRÓLOGO

A madrugada é um abrigo. Resumir uma vida inteira em poucas linhas é como tentar capturar o infinito em um frasco. Cada experiência, emoção e aprendizado é uma camada complexa que não pode ser reduzida à simplicidade das palavras. As nuances das relações, os desafios enfrentados e os sonhos cultivados se entrelaçam de maneiras únicas. Uma vida é um mosaico de momentos que, juntos, formam uma história rica e intricada. Assim, qualquer resumo sempre deixará de lado a profundidade da verdadeira experiência humana.

O sol se põe no pequeno quintal onde um homem de cerca de 70 anos, se encontra. O céu, tingido de laranja e roxo, parece refletir as cores de sua vida: um espectro de emoções, alegrias e tristezas, que se entrelaçam como as nuvens que passam lentamente. Ele respira fundo, sentindo a brisa suave que traz consigo o cheiro dos jasmins que florescem no jardim. Com sua cadela, Raio de Sol, deitada aos seus pés, decide que era hora de desabafar.
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A BUSCA DO SENTIDO DA VIDA

Desde a infância, fora moldado por pais que, embora judeus, não eram religiosos. Eles lhe ensinaram a importância dos valores, mas sempre o fizeram sob a rígida ótica dos mandamentos bíblicos. Cresceu ouvindo que deveria ser um homem de bem, mas em algum ponto, perdeu de vista o que realmente significava ser ele mesmo. A vida lhe deu rasteiras, e ele aprendeu a se levantar, mas a cada queda, um pedaço de sua essência se despedaçava.

Na juventude, enquanto trabalhava num laboratório, se apaixonou por Najla, uma mulher árabe, cujo sorriso iluminava até os dias mais sombrios. Juntos, enfrentaram o preconceito e a guerra que cercava suas vidas numa época de intolerância entre árabes e judeus, criando uma filha, Yasmin que, por um breve momento, trouxe luz ao seu mundo. Mas o destino, sempre cruel, não lhes deu tempo para sonhar. A menina foi tragicamente assassinada por assaltantes, e Najla, em um ato de desespero, tirou a sua própria vida, deixando ele em um abismo de dor e solidão.

Ele se lembra da noite em que tentou tirar a própria vida, atormentado pela crença de que Deus o condenara por amar alguém fora de suas crenças. A culpa e o luto se tornaram sombras que o acompanharam, enquanto buscava ajuda em terapias que nunca tocavam a raiz de sua dor. E assim, a vida passou, sem que ele conseguisse concluir nenhum projeto, sem que a sociedade e sua família entendesse a profundidade de suas cicatrizes.

Sozinho, se fechou em uma redoma e se lançou na literatura e na música, buscando preencher o vazio que parecia se alargar a cada dia. Mas, por mais que estudasse e se dedicasse, um sentimento de vazio o acompanhava. O olhar desaprovador dos outros, que viam sua falta de formação acadêmica como um fracasso, só alimentava sua frustração.

A literatura, a música e outras paixões foram as âncoras que o mantiveram à tona durante suas tempestades emocionais. Quando a dor da perda de Najla e da filha Yasmin, se tornava insuportável, ele encontrava refúgio nas páginas de livros que o transportavam para mundos distantes. Autores o ajudaram a explorar as profundezas da condição humana, refletindo sobre a dor, a culpa e a busca por sentido. Cada página virada era um passo a mais em seu processo de luto, permitindo-lhe externalizar sentimentos que, de outra forma, teriam permanecido aprisionados em seu coração.

A literatura ofereceu não apenas uma fuga, mas também a capacidade de dar voz ao seu sofrimento. Ele começou a escrever, não como um autor, mas como um catarse*. Poemas e contos curtos se tornaram diários de sua dor, em que registrava suas lembranças, seus medos e suas esperanças. As palavras se tornaram um espaço seguro onde ele podia chorar, gritar e, eventualmente, aceitar a realidade de sua perda.

A escrita se transformou em um refúgio e um processo terapêutico essencial em sua jornada de luto. Desde o momento em que a dor da perda se instalou em seu coração, ele percebeu que precisava de uma forma de liberar suas emoções e dar voz ao que sentia. A caneta se tornou sua aliada, e o papel, seu confidente. Cada palavra escrita era uma liberação. Começou a escrever como uma forma de catarse; suas emoções, antes sufocadas pelos traumas, encontravam espaço para serem expressas. Ao registrar suas lembranças, lágrimas e angústias, ele não apenas falava sobre a dor, mas também a confrontava. A escrita ofereceu um meio de transformar o sofrimento em algo tangível, permitindo que ele olhasse para sua dor de uma nova perspectiva.

Ao escrever, se viu mergulhado em um processo de reflexão. As páginas tornaram-se um espelho onde ele podia observar suas lutas internas. Ele começou a questionar suas crenças, suas decisões e as influências que moldaram sua vida. Começou a construir narrativas que lhe permitiram ressignificar suas experiências. Ele escrevia para Yasmin e Najla, não apenas como figuras trágicas, mas como partes essenciais de sua história. Ao recontar suas memórias, ele pôde celebrar os momentos felizes que viveram juntos, transformando a dor da perda em uma homenagem ao amor que compartilhavam. Ao escrever sobre essa experiência, ele conseguiu explorar sua dor e sua luta interna. Através das palavras, ele começou a libertar-se do fardo da culpa, compreendendo que o amor não era um pecado, mas uma força poderosa que transcendia barreiras.

Em suas reflexões, começou a escrever cartas que nunca seriam enviadas, endereçadas a Yasmin e à sua filha. Essas cartas, embora não destinadas a serem lidas, tornaram-se uma forma de diálogo com aquelas que ele perdera. Essa prática o ajudou a sentir uma conexão contínua com elas, como se pudesse compartilhar seus pensamentos e sentimentos, mesmo na ausência física.

A música, por sua vez, era como um bálsamo para a alma. Encontrou consolo nas melodias de compositores clássicos, cujas sinfonias pareciam compreender sua tristeza. As notas de Chopin e Beethoven ecoavam em sua casa, preenchendo o ar de uma beleza que contrastava com sua dor. Ele aprendeu a tocar saxofone, cada som se tornando uma extensão de seu coração partido. Quando a melancolia o envolvia, ele se entregava à música, permitindo que as emoções fluíssem através de suas mãos.

A música também o conectava a memórias de Najla. Havia uma canção que ela costumava cantar para a filha, Acalanto, de Caymmi; ao tocá-la, sentia como se estivesse revivendo aqueles momentos e as lágrimas vertiam por sua face como cachoeiras. Essa conexão o ajudou a navegar pela dor, transformando-a em algo mais palatável. Em vez de ser um mero espectador de sua tragédia, ele se tornou o protagonista de uma sinfonia de luto e amor.

Através da literatura e da música, ele encontrou um propósito renovado, um modo de honrar a memória de Yasmin e de Najla. Ele entendeu que a vida continuava, e que, apesar das cicatrizes, ainda havia espaço para o amor àqueles que lhe foram caros na vida.

A solidão tornou-se sua única companheira, até que encontrou um amor inesperado nos animais.

Seus cães e gatos tornaram-se irmãos, preenchendo o vazio que a vida lhe deixara. Raio de Sol, uma cadela resgatada das ruas, entrou em sua vida como um sopro de esperança. Com ela, redescobriu a capacidade de amar. Ela é a razão de seu sorriso, o motivo de suas caminhadas e as tardes de sol. Com ela ao seu lado, ele se sente menos sozinho, mesmo que a dor da perda ainda o assombre, mesmo após 50 anos.

Agora, sentado no quintal, olha para Raio de Sol, que o observa com aqueles olhos cheios de amor incondicional. Ele sente que, apesar de tudo, ela é a sua salvação. Com diversos problemas de saúde e o tempo se esvaindo entre os dedos, ele reza diariamente. Não por um Deus que o abandonou, mas por uma vida mais longa para Raio de Sol. Que sua cadela tenha o tempo que ele não pôde dar à sua filha, que possa sentir o amor que ele não pôde oferecer à Najla.

“Se eu tiver que partir”, pensa, “quero que seja ao lado dela. Que minha alma a acompanhe, onde quer que vá.” A paz verdadeira parece distante, mas ele sente que, ao menos, não estará sozinho na partida.

O amor que ele dá e recebe de Raio de Sol, que, mesmo em meio à dor, lhe proporciona momentos de pura felicidade. E assim, ele sorri, no silêncio, sabendo que, apesar de tudo, tinha vivido um amor que transcendeu todas as barreiras e preconceitos.

Ele fecha os olhos, desejando que o amor que sente por sua cadela seja o último legado que deixará ao mundo.
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EPÍLOGO

A madrugada é a mais fiel companheira, é ela que abraça e envolve em seu manto.

Madrugada, suave manto,
que me envolve em teu calor,
teu silêncio é um canto,
que acalma minha profunda dor.

Em teus braços a solidão se esconde,
e as estrelas, testemunhas do meu sofrer,
a lua, amiga que responde,
a cada lágrima que insiste em verter.

Teus sussurros são bálsamo e abrigo,
enxugando as dores que venho a sentir,
teu cobertor um carinho antigo,
que me ensina a esperar e a resistir.

A noite tece sonhos em meio ao pranto,
e na escuridão encontro a luz.
Madrugada… teu amor é um canto,
que me abraça, que me conduz.

Em cada pensamento que flutua,
teu silêncio se torna um lar.
Madrugada… doce e nua,
é em ti que aprendo a amar.

E quando a aurora, tímida, chega,
leva com ela o peso da dor,
mas em ti, ó madrugada, o mundo se aconchega, 
pois é em ti que vive o amor.
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* Catarse = em psicologia, liberação de emoções ou tensões reprimidas.
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Baseado em fatos reais

As Sombras da Solidão

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