terça-feira, 23 de setembro de 2025

O reflexo do Criador

Texto construído tendo por base a trova de Nei Garcez (Curitiba/PR)
Só quem vive sem vaidade,
difundindo o que é o amor,
tem a mesma identidade
de seu próprio Criador.
Na pequena cidade de Pedra Clara, havia uma igreja simples no topo de uma colina. Não era grandiosa como as catedrais que se veem em cartões-postais, mas tinha algo que encantava: a luz suave do pôr do sol atravessava seus vitrais antigos, transformando o interior em um espetáculo de cores. Ali, toda tarde, sentava-se Dona Léia, uma senhora de cabelos brancos e mãos sempre ocupadas em tricotar algo – fosse uma manta para um recém-nascido, um cachecol para alguém enfrentar o inverno ou uma toalha para o altar da igreja. Pouco importava; o que fazia, fazia com amor.

Ela era conhecida por sua generosidade. Quem a procurasse, fosse para pedir um prato de comida, uma palavra de consolo ou mesmo um sorriso, nunca saía de mãos vazias. Ela era dessas pessoas que pareciam carregar o mundo nas costas sem nunca reclamar. Muitos diziam que ela era uma santa, mas ela apenas ria e balançava a cabeça. "Não sou santa, minha gente. Só faço o que acho que todo mundo deveria fazer", dizia com simplicidade.

Mas nem todos a viam com bons olhos. Algumas pessoas da cidade, especialmente aquelas que ostentavam roupas elegantes e posses, achavam que Dona Léia era “ingênua demais”. “Essa mulher dá tudo o que tem, vive para os outros e não para si mesma”, comentavam em rodinhas de fofoca. Para eles, a vida deveria ser vivida com mais ambição, mais cuidado com a própria imagem, mais vaidade.

Certa vez, numa manhã de domingo, o padre da igreja decidiu pregar sobre o amor. Ele começou com uma pergunta que ecoou pelos bancos de madeira: "Quem aqui tem a coragem de viver sem vaidade e difundir o amor como Jesus nos ensinou?"

O silêncio foi imediato. Os fiéis olhavam uns para os outros, desconfortáveis. O padre continuou: "Não é fácil. Vivemos num mundo que nos ensina a pensar em nós mesmos, a buscar nosso próprio reflexo no espelho, enquanto esquecemos de olhar para o próximo."

Ao final da missa, Dona Léia foi a última a sair. O padre a chamou e disse: 

"Léia, você é a prova viva de que o amor de Deus se manifesta nas ações simples. O que você faz pela nossa comunidade é algo que nenhum sermão pode ensinar." 

Ela sorriu, mas desconversou. 

"Padre, eu só faço o que meu coração manda. Se isso é amor, então ele não é meu, é de Deus."

Dias depois, uma tragédia abalou Pedra Clara. Uma enchente inesperada atingiu a cidade, destruindo casas, plantações e deixando muitas famílias sem nada. Entre os desabrigados estava a família de Dona Léia — sua casa, construída com esforço ao longo de décadas, foi parcialmente destruída pela correnteza. Quando os moradores souberam, muitos se ofereceram para ajudá-la, mas, para surpresa de todos, ela não parecia preocupada com sua própria perda.

Ela arregaçou as mangas e começou a organizar um mutirão para ajudar os outros. "Minha casa se foi, mas a vida continua. Vamos reconstruir juntos", dizia com um sorriso sereno. E assim fez. Enquanto muitos ainda choravam suas perdas, ela entregava roupas, dividia o pouco de comida que restava e consolava quem precisava.

Um dia, enquanto ajudava a levantar uma nova moradia para uma família, uma jovem mulher a questionou: "Dona Léia, por que a senhora faz tudo isso? Não sente falta de cuidar de si mesma, de pensar só na sua vida?"

A velha senhora parou por um momento, olhou para as próprias mãos — agora marcadas pelo tempo e pelo trabalho — e respondeu: 

"Minha filha, cuidar de mim é cuidar dos outros. Não vejo diferença. Quando você dá amor, ele não acaba; ele cresce. E eu acredito que, quando a gente vive assim, sem vaidade, sem esperar nada em troca, nos tornamos mais parecidos com Deus. Não há riqueza maior do que essa."

A jovem ficou em silêncio, refletindo. E, naquele instante, pareceu compreender algo que livros e sermões nunca haviam lhe ensinado.

Meses depois, a cidade de Pedra Clara estava reconstruída. As pessoas, inspiradas por Dona Léia, aprenderam a se ajudar mais, a olhar para o outro com mais empatia. E, embora a casa dela nunca tivesse sido totalmente restaurada, ela continuava a viver com a mesma simplicidade de sempre.

Os moradores, agora mais sábios, passaram a enxergar algo que antes ignoravam: a verdadeira identidade de Dona Léia não estava em suas roupas ou posses, mas no amor que ela espalhava. Era como um reflexo do Criador, um lembrete silencioso de que só quem vive sem vaidade, difundindo o que é o amor, pode se aproximar da essência divina.

E assim, a pequena cidade, antes tão preocupada com aparências, aprendeu que a grandeza está nos gestos simples. Dona Léia, com sua vida despretensiosa, tornou-se um exemplo eterno de que o Criador não se encontra em altares luxuosos ou discursos eloquentes, mas no coração de quem vive para amar.

Fontes:
José Feldman. Caleidoscópio da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

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