quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Mais filas na comédia da vida

 
Ah, as filas continuam! Esses longos e intermináveis serpentários que, mais do que um mero aborrecimento, se tornaram verdadeiros palcos de comédia na vida cotidiana. Se você já se viu preso em uma fila, sabe que, por mais frustrante que possa ser, sempre há espaço para boas risadas. Vamos explorar o fascinante mundo das filas em cinco cenários clássicos, onde a paciência é testada.

FILAS DO BANHEIRO: O GRANDE ENIGMA
Comecemos pela fila do banheiro, o local onde o tempo parece parar e a necessidade se torna uma questão de vida ou morte. Você está lá, na fila, e percebe que cada pessoa na sua frente parece estar enfrentando um dilema existencial. Uma mulher, com uma expressão de concentração digna de um filósofo, observa o relógio e parece estar calculando a média de tempo que cada um leva dentro da cabine.

Enquanto isso, uma criança na fila começa a fazer perguntas filosóficas sobre o que acontece dentro do banheiro. “Mamãe, por que o tio está demorando tanto? Ele está fazendo xixi ou tentou entrar em outra dimensão?” E você, ali, tentando não rir da situação, se pergunta se a resposta envolve um portal mágico.

Quando finalmente é sua vez, você entra e percebe que, em um universo paralelo, o banheiro é um spa luxuoso, mas na realidade, é só um cubículo apertado com uma descarga que faz mais barulho do que alívio. No momento em que você sai, a fila aumentou e a pergunta filosófica da criança ecoa em sua mente: “O que é mais estressante: esperar ou estar dentro?”

FILAS PARA O CINEMA: O SHOW DO ENTRETENIMENTO
Depois de sobreviver ao banheiro, você decide ir ao cinema, acreditando que a fila para comprar ingressos será mais tranquila. Mas, ah, a inocência! Na fila, você se depara com uma verdadeira assembleia de cinéfilos. Um grupo discute fervorosamente o último filme de super-herói, enquanto outro faz teorias mirabolantes sobre quem é o verdadeiro vilão da trama.

Quando finalmente chega sua vez, você percebe que o atendente tem a velocidade de um caracol em dia de folga. Enquanto você espera, começa a sentir a pressão. Decidir entre a pipoca doce ou salgada se torna um dilema filosófico. “E se eu escolher a pipoca salgada e, no meio do filme, desejar a doce? E se a pipoca doce não combina com o filme de terror que escolhi?” As angústias cinematográficas são reais!

Finalmente, você consegue comprar seu ingresso e, ao entrar na sala, descobre que a única vaga disponível é ao lado do grupo que não parou de comentar sobre o filme, mesmo durante a exibição. E assim, a fila se transforma em uma experiência de cinema interativa.

FILAS PARA O ATENDIMENTO MÉDICO: O CONSULTÓRIO DO DRAMA
Agora, é hora de ir ao médico. As filas de espera nos consultórios são um espetáculo à parte. Você entra e se depara com uma sala cheia de pessoas que parecem estar em um reality show de “Quem Tem a Doença Mais Estranha”. Ao seu lado, um senhor está explicando para a esposa que ele tem certeza de que sua dor nas costas é causada por um ataque alienígena.

Enquanto espera, você se distrai contando as plantinhas da sala, que tentam, em vão, melhorar o clima. E então, quando finalmente é chamado, você se sente como um jogador de loteria que acabou de ganhar o prêmio. Mas, ao entrar no consultório, o médico parece ter saído para um café e você acaba esperando mais cinco minutos dentro da sala, pensando se a espera estava realmente valendo a pena.

FILAS NO CARTÓRIO: O LABIRINTO DA BUROCRACIA
Depois da consulta, você precisa ir ao cartório. Ah, o cartório, onde a burocracia é elevada à categoria de arte. Você entra e se depara com uma fila que parece ter saído de um filme de terror, onde os cidadãos estão ali, cada um com sua história de desespero.

A conversa entre os que estão na fila é digna de uma comédia de stand-up . “Você já viu como é o novo formulário? Parece que é mais fácil se alistar na NASA do que tentar registrar um documento aqui!” E todos riem, compartilhando suas experiências de como preencher um simples papel se tornou um verdadeiro teste de paciência.

Quando finalmente chega sua vez, a atendente parece ter saído de um filme de ação, digitando tão rápido que você se pergunta se ela está tentando salvar o mundo ou apenas registrando um documento. E você, claro, esquece todos os documentos que deveria ter trazido.

FILAS PARA O ÔNIBUS: O TEATRO DA VIDA URBANA
Por fim, mas não menos importante, a fila para o ônibus. Chegar à parada é como um jogo de estratégia. Você se posiciona no lugar certo, mas logo percebe que alguém mais ousado já está na sua frente, como se tivesse um mapa secreto do caminho mais curto.

Enquanto espera, você ouve conversas hilárias. Um grupo de adolescentes discute se a nova série da moda é melhor que a anterior, e você se pega pensando se a vida real é tão dramática quanto as tramas que eles discutem. E quando o ônibus finalmente chega, a “luta” para entrar se transforma em uma cena de ação digna de Hollywood, com empurrões e acrobacias.

E assim, ao final de um dia repleto de filas, você percebe que a vida é um grande circo, e cada fila é uma atração à parte. Rir das situações absurdas, compartilhar histórias e até mesmo fazer amigos inesperados no caminho é o que torna tudo mais divertido. Portanto, da próxima vez que você se deparar com uma fila, lembre-se: não é apenas uma espera, é uma oportunidade de viver um pouco mais da comédia da vida!

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.

terça-feira, 23 de setembro de 2025

O reflexo do Criador

Texto construído tendo por base a trova de Nei Garcez (Curitiba/PR)
Só quem vive sem vaidade,
difundindo o que é o amor,
tem a mesma identidade
de seu próprio Criador.
Na pequena cidade de Pedra Clara, havia uma igreja simples no topo de uma colina. Não era grandiosa como as catedrais que se veem em cartões-postais, mas tinha algo que encantava: a luz suave do pôr do sol atravessava seus vitrais antigos, transformando o interior em um espetáculo de cores. Ali, toda tarde, sentava-se Dona Léia, uma senhora de cabelos brancos e mãos sempre ocupadas em tricotar algo – fosse uma manta para um recém-nascido, um cachecol para alguém enfrentar o inverno ou uma toalha para o altar da igreja. Pouco importava; o que fazia, fazia com amor.

Ela era conhecida por sua generosidade. Quem a procurasse, fosse para pedir um prato de comida, uma palavra de consolo ou mesmo um sorriso, nunca saía de mãos vazias. Ela era dessas pessoas que pareciam carregar o mundo nas costas sem nunca reclamar. Muitos diziam que ela era uma santa, mas ela apenas ria e balançava a cabeça. "Não sou santa, minha gente. Só faço o que acho que todo mundo deveria fazer", dizia com simplicidade.

Mas nem todos a viam com bons olhos. Algumas pessoas da cidade, especialmente aquelas que ostentavam roupas elegantes e posses, achavam que Dona Léia era “ingênua demais”. “Essa mulher dá tudo o que tem, vive para os outros e não para si mesma”, comentavam em rodinhas de fofoca. Para eles, a vida deveria ser vivida com mais ambição, mais cuidado com a própria imagem, mais vaidade.

Certa vez, numa manhã de domingo, o padre da igreja decidiu pregar sobre o amor. Ele começou com uma pergunta que ecoou pelos bancos de madeira: "Quem aqui tem a coragem de viver sem vaidade e difundir o amor como Jesus nos ensinou?"

O silêncio foi imediato. Os fiéis olhavam uns para os outros, desconfortáveis. O padre continuou: "Não é fácil. Vivemos num mundo que nos ensina a pensar em nós mesmos, a buscar nosso próprio reflexo no espelho, enquanto esquecemos de olhar para o próximo."

Ao final da missa, Dona Léia foi a última a sair. O padre a chamou e disse: 

"Léia, você é a prova viva de que o amor de Deus se manifesta nas ações simples. O que você faz pela nossa comunidade é algo que nenhum sermão pode ensinar." 

Ela sorriu, mas desconversou. 

"Padre, eu só faço o que meu coração manda. Se isso é amor, então ele não é meu, é de Deus."

Dias depois, uma tragédia abalou Pedra Clara. Uma enchente inesperada atingiu a cidade, destruindo casas, plantações e deixando muitas famílias sem nada. Entre os desabrigados estava a família de Dona Léia — sua casa, construída com esforço ao longo de décadas, foi parcialmente destruída pela correnteza. Quando os moradores souberam, muitos se ofereceram para ajudá-la, mas, para surpresa de todos, ela não parecia preocupada com sua própria perda.

Ela arregaçou as mangas e começou a organizar um mutirão para ajudar os outros. "Minha casa se foi, mas a vida continua. Vamos reconstruir juntos", dizia com um sorriso sereno. E assim fez. Enquanto muitos ainda choravam suas perdas, ela entregava roupas, dividia o pouco de comida que restava e consolava quem precisava.

Um dia, enquanto ajudava a levantar uma nova moradia para uma família, uma jovem mulher a questionou: "Dona Léia, por que a senhora faz tudo isso? Não sente falta de cuidar de si mesma, de pensar só na sua vida?"

A velha senhora parou por um momento, olhou para as próprias mãos — agora marcadas pelo tempo e pelo trabalho — e respondeu: 

"Minha filha, cuidar de mim é cuidar dos outros. Não vejo diferença. Quando você dá amor, ele não acaba; ele cresce. E eu acredito que, quando a gente vive assim, sem vaidade, sem esperar nada em troca, nos tornamos mais parecidos com Deus. Não há riqueza maior do que essa."

A jovem ficou em silêncio, refletindo. E, naquele instante, pareceu compreender algo que livros e sermões nunca haviam lhe ensinado.

Meses depois, a cidade de Pedra Clara estava reconstruída. As pessoas, inspiradas por Dona Léia, aprenderam a se ajudar mais, a olhar para o outro com mais empatia. E, embora a casa dela nunca tivesse sido totalmente restaurada, ela continuava a viver com a mesma simplicidade de sempre.

Os moradores, agora mais sábios, passaram a enxergar algo que antes ignoravam: a verdadeira identidade de Dona Léia não estava em suas roupas ou posses, mas no amor que ela espalhava. Era como um reflexo do Criador, um lembrete silencioso de que só quem vive sem vaidade, difundindo o que é o amor, pode se aproximar da essência divina.

E assim, a pequena cidade, antes tão preocupada com aparências, aprendeu que a grandeza está nos gestos simples. Dona Léia, com sua vida despretensiosa, tornou-se um exemplo eterno de que o Criador não se encontra em altares luxuosos ou discursos eloquentes, mas no coração de quem vive para amar.

Fontes:
José Feldman. Caleidoscópio da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

A visita da felicidade

Texto construído tendo por base a trova de Lucília A. T. Decarli (Bandeirantes/PR)
A felicidade é rara
e bem poucos a conhecem…
Os que a viram “cara a cara”,
nunca mais dela se esquecem!
A felicidade, dizem, é uma dama rara. Não é dessas que se encontra todos os dias na praça, nem das que se deixam levar por promessas vazias ou abraços apressados. Ela tem seus próprios caprichos e, ao que tudo indica, gosta de aparecer quando menos se espera — mas nunca por acaso.

Certa vez, ouvi dizer que um homem a viu de perto. Era um sujeito simples, desses que a vida insiste em testar. Trabalhava duro, sonhava pouco, mas guardava um sorriso no canto dos lábios, como quem sabe que, mesmo em dias nublados, há um sol por trás das nuvens. Um dia, enquanto varria o quintal ao som do vento, ali, entre as folhas secas e a poeira da estrada, ela apareceu.

A felicidade chegou sem avisar, como uma brisa que refresca sem pedir licença. Não trazia roupas luxuosas, nem se anunciava com fanfarra. Era apenas uma sensação — um calor que lhe subiu pela espinha ao ouvir o riso de seu filho brincando no quintal, ao sentir o cheiro do café fresco vindo da cozinha, ao perceber que, naquele instante, nada lhe faltava. Ele parou. Olhou ao redor e percebeu: ela estava ali.

Mas a felicidade, como sabemos, não é dessas que ficam para sempre. Ela tem o hábito de visitar e partir, deixando atrás de si um rastro de saudade. O homem sabia disso; não tentou prendê-la, não fez perguntas, nem exigiu explicações. Apenas a contemplou, “cara a cara”, como quem sabe que momentos assim nos transformam. Quando ela se foi, deixou consigo algo precioso: a memória do instante.

E é isso que os que a viram carregam consigo. A felicidade, quando surge, não precisa durar uma eternidade para ser inesquecível. Basta um momento, uma fagulha, e ela finca raízes no coração de quem a viveu. Porque, no fundo, não é ela que é rara — rara é a nossa capacidade de reconhecê-la.

Então, se por acaso a felicidade lhe fizer uma visita, não a obrigue a ficar. Apenas a viva. E quando ela for embora, não a lamente. Afinal, os que a viram, mesmo que por um breve instante, nunca mais dela se esquecem.
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JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor, professor e gestor cultural. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas de São Paulo. Devido à situação financeira insuficiente não concluiu a Faculdade de Psicologia, na FMU, contudo se fez e ainda se faz presente em mais de 200 cursos presenciais e online no Brasil e no exterior (Estados Unidos, México, Escócia e Japão), sendo em sua maioria de arqueologia, astronomia e literatura. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Morou na capital de São Paulo, onde nasceu, em Taboão da Serra/SP, em Curitiba/PR, em Ubiratã/PR, em Maringá/PR. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Confraria Brasileira de Letras, Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras Brasil/Suiça, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul (com trovas do mundo). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em crônicas, contos, poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações de sua autoria “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); “Canteiro de trovas”; “Pérgola de textos” (crônicas e contos), “Caleidoscópio da Vida” (textos sobre trovas) e “Asas da poesia”.

Fontes:
José Feldman. Caleidoscópio da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

domingo, 21 de setembro de 2025

Dois Amigos e um Mentiroso

 Texto construído tendo por base a trova de José Feldman (Floresta/PR)
O que me deixa grilado, 
é nunca saber jamais, 
com dois amigos ao lado, 
qual deles que mente mais.
Era uma vez três amigos inseparáveis: João, Pedro e Luís. Eles eram conhecidos por suas aventuras e travessuras, mas havia uma coisa que sempre deixava João grilado: nunca saber qual dos seus dois amigos mentia mais.

João: (desconfiado) Pedro, você não vai acreditar! Ontem à noite, vi um OVNI no quintal!

Pedro: (sorrindo) Mesmo? Coincidentemente, eu também vi. E o mais engraçado é que o extraterrestre desceu da nave e me pediu indicações para chegar à padaria!

Luís: (entrando na conversa) Padaria? Vocês dois não sabem de nada! Eu fui abduzido por extraterrestres semana passada e joguei uma partida de truco com eles! Ganhei todas as rodadas!

João olhou para os dois amigos com uma sobrancelha levantada. Ele sabia que uma dessas histórias era, definitivamente, uma mentira. Talvez até todas. Mas como saber?

João: (provocando) É mesmo, Luís? Você sempre tem as histórias mais malucas. Mas, e você, Pedro? O que acha disso?

Pedro: Ah, João, você sabe como é. Luís sempre exagera. Mas eu juro que o extraterrestre me pediu indicações. Até tirei uma selfie com ele!

Luís: (rindo) Selfie? Essa é boa! Eu tenho um autógrafo de um alienígena no meu caderno de anotações. Quer ver?

João: (coçando a cabeça) Ah, vocês dois... sempre me deixam confuso. Quem está falando a verdade?

Pedro: (olhando seriamente) João, vou te contar uma coisa. Luís gosta de inventar histórias, mas eu sempre digo a verdade. Só que... hmmm, talvez nem sempre.

Luís: (sarcástico) Ah, claro, Pedro é um santo. João, não acredite nesse mentiroso. Vou te contar a verdade verdadeira: eu sou o Rei da Verdade! Exceto quando não sou.

João suspirou. Ele sabia que nunca conseguiria distinguir a verdade da mentira quando se tratava de seus amigos. Mas, no fundo, ele também sabia que isso fazia parte da diversão de ser amigo de Pedro e Luís.

João: (rindo) Vocês dois são inacreditáveis! Acho que o verdadeiro desafio é saber qual de vocês está mentindo menos, e não mais!

Pedro: (brincando) Talvez a gente devesse fazer um concurso. Quem conta a mentira mais elaborada ganha um prêmio!

Luís: (animado) Boa ideia! Mas o prêmio tem que ser algo grandioso... como uma viagem ao espaço para conhecer meus amigos alienígenas!

Os três amigos riram alto e continuaram a contar suas histórias malucas, sem nunca se importar com a verdade ou a mentira. Afinal, o que realmente importava era a diversão e a amizade.

João: (sorrindo) Sabe, talvez eu nunca saiba qual de vocês mente mais. Mas uma coisa é certa: vocês são os melhores amigos que alguém poderia ter.

E assim, João, Pedro e Luís seguiram com suas aventuras e mentirinhas, sempre juntos e sempre se divertindo, sem nunca se preocupar demais com quem estava falando a verdade.

Fontes:
José Feldman. Caleidoscópio da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

sábado, 20 de setembro de 2025

As aparências enganam

Epitáfio Epaminondas era um homem simples, que vivia na Vila dos Velhos, no 
litoral brasileiro, em um apartamento no último andar, que fazia questão de afirmar que era de cobertura, mas ele mal-mal conseguia dividi-lo com seus dois cachorros, o gato, o papagaio e alguns passarinhos. Apesar da idade, já beirando seus 65 anos, vivia tranquilo. Trabalhava num jornal chamado “Fumos Cão”, fazendo bicos e, mesmo gostando de escrever - às vezes - ele possuía um cargo semelhante a um office-boy, ou como ele mesmo  denominava: “office-velho”.

Apesar de ser uma pessoa pacata, infelizmente o seu nome provocava alguns desentendimentos para quem não tinha conhecimento do riscado. No consultório médico:

– Dona Rosinha, cadê seu Epitáfio?

E dona Rosinha, uma senhora de idade razoavelmente avançada, apavorada:

– Doutor? Eu estou tão ruim assim? Meu Deus!!!!

– Calma, dona Rosinha. Por que esse apavoramento todo?

– O se…se…senhor está já pedindo meu epitáfio!

– Calma, dona Rosinha. Não é o seu epitáfio, é este senhor que está aí no consultório, ele se chama Epitáfio Epaminondas. Por favor, quando se recobrar, peça para ele entrar.

E, por aí se vai... imagine, meu caro leitor, no escritório de advocacia, nos velórios e enterros, sempre que confusão era formada! Epitáfio… Epitáfio… quem seria o infeliz que foi dar um nome desses a alguém? No mínimo, devia trabalhar como coveiro em algum cemitério!

Mas estou me desviando do verdadeiro objetivo destas “mal-traçadas linhas”. Epitáfio ficava parte do tempo, quando estava em casa, olhando pela janela. E quando alguém chegava para visitá-lo, geralmente com os bofes de fora, quase fazendo mesmo seu epitáfio, após subir oito lances de escada de uns quinze degraus cada (o elevador já havia ido pro beleléu fazia tempo e, do jeito que os preços iam pela morte, não tinham como pagar o conserto) pois bem, sempre que lá chegavam os amigos,  encontravam-no à janela e murmurando: “Aquele é meu carrinho. Aquele é meu carrinho.” E soltava um longo suspiro.

No outro lado da rua, meio encoberto por algumas árvores, viam um carro vermelho, uma Ferrari. E Epitáfio apontava para ela.

Era assim, toda vez que alguém aparecia para vê-lo. Epitáfio era viúvo, sem filhos. E a paixão dele era aquele carrinho. Para os que o conheciam, era difícil concatenar: como um “office-velho”, que ganhava um salário mínimo - se muito - e mais um salário da aposentadoria, morando num apartamento “de cobertura” podia ter uma Ferrari, que custava quase 1 milhão de dólares? Então, claro, tudo isso levava a aventarem as mais loucas elocubrações sobre seu poder aquisitivo: desde heranças, assalto já prescrito em que ele ficara com o dinheiro, até recolher os valores dos mortos no cemitério.

Enfim, era algo que deixava o povo com a “pulga atrás da orelha”. Devia ter dinheiro embaixo do colchão, ou conta nas Ilhas Cayman.

Passavam-se os dias, meses e seu Epitáfio dizia: “Aquele é meu carrinho. Aquele é meu carrinho”.

Um dia, uma fatalidade ocorreu: uma tempestade violenta se deu naquele vilarejo, as árvores velhas vergavam diante da força dos ventos que assolavam implacavelmente a terra. Uma árvore inteira se partiu e caiu sobre a Ferrari, destroçando-a.

A paixão de Epitáfio estava destruída. Simplesmente ele deveria estar arrasado. Os amigos resolveram se reunir para visitá-lo, para tentar animá-lo. E lá se foi um bando de gente, parecia até um arrastão, subindo a escadaria. Alguns pararam no meio do caminho para recuperar o fôlego e sentir novamente as pernas, que já estavam falhando; outros chegaram ao apartamento de Epitáfio mais mortos que vivos. Mas todos finalmente conseguiram adentrar o apartamento.

Epitáfio brincava com seus cachorros, jogando uma bolinha: – “Bolinha! Bolinha!”- e jogava para os cachorros que, preguiçosos, só olhavam a bolinha rolar pela sala.

Ao ver aquele “mundaréu” de gente entrando em sua casa, preparou-se para alguma notícia ruim. Alguém do seu rol de amizades deveria ter morrido. Afinal, muitos estavam apenas esperando a laçada, pois conforme ele, Jesus já os estava chamando, mas já estavam surdos, por isso não iam. Só laçando, mesmo.

Epitáfio logo interpelou:

– Que aconteceu? Quem morreu?

Um dos amigos se prontificou em lhe dar os detalhes:

– Meu amigo, sinto muito pelo ocorrido.

– Pelo o quê? Não estou sabendo de nada. Desembucha logo, homem de Deus!

– Seja forte. É melhor se sentar. Estamos aqui para lhe dar a maior força.

– Já está me assustando. O que foi??????

– Sentimos muito pela sua paixão.

– A Valéria? Meu Deus! A Valéria não! Que aconteceu?

– Quem é Valéria?

Nesta altura do campeonato, antes que levasse um cartão vermelho, Epitáfio se tocou que eles não sabiam de sua paixão secreta pela antiga colega de escola. E, rapidinho, tentou desconversar:

– Valéria é uma conhecida da internet.

– Pois é, caiu uma árvore sobre ela…

– A Valéria? – se assustou Epitáfio.

– Afinal, quem é Valéria?

A coisa estava ficando cada vez mais enrolada e não se chegava à parte alguma. Daí Epitáfio tomou fôlego e perguntou, apreensivo:

– A árvore caiu em quem?

– Ora, homem! Sobre seu carro.

– Que carro? Não tenho carro!

– Aquela Ferrari vermelha que ficava estacionada aí embaixo.

– Não é minha!

Daí que a multidão de amigos começou a “pirar no parafuso”. A conversa já estava “degringolando” e precisava ter um epílogo.

– Como... não é sua!? Você vivia suspirando sobre ela, toda vez que vínhamos te visitar! “Aquele é meu carrinho! Aquele é meu carrinho!”

– Vocês alguma vez me viram dirigindo a Ferrari? Ou mesmo dentro dela?

Os amigos olharam uns para os outros.

– Na verdade, não!

– Pois é! Tem uma importadora de carros do outro lado da rua.

E, para dar um ponto final, Epitáfio fez o epitáfio:

– Afinal, sonhar não é crime! Ou é?
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sexta-feira, 19 de setembro de 2025

A Luz

 para Maya
[São Paulo/SP 1997 – Maringá/PR 2013]

Foste uma amiga, uma irmã,
foste uma luz, o calor.
No despertar da manhã,
foste… simplesmente amor.
Em uma pequena cidade, havia um homem chamado Giuseppe, que viveu a maior parte de sua vida imerso na solidão. Mas, tudo mudou quando ele encontrou uma cadela abandonada na rua. Ela era uma mistura de raças, com olhos brilhantes e um jeito brincalhão que derreteu seu coração. Giuseppe a chamou de Maya, e desde aquele dia, eles se tornaram inseparáveis.

Maya trouxe alegria para a vida dele. Juntos, exploravam parques, faziam longas caminhadas e compartilhavam momentos simples, como assistir ao pôr do sol no quintal. Com o passar dos anos, Maya se tornou mais do que uma companheira; ela era sua melhor amiga, sua luz em dias sombrios.

Os anos passaram rapidamente e, ao completar 16 anos, Maya começou a apresentar sinais de fraqueza. A energia que antes brilhava em seus olhos agora era apenas um lampejo. Giuseppe, preocupado, levou-a ao veterinário, onde recebeu a notícia que temia: Ela estava envelhecendo e seu tempo estava se esgotando.

Nos dias que se seguiram, Giuseppe fez tudo o que pôde para tornar os últimos momentos de Maya especiais. Ele a levou a todos os lugares que ela amava, preparou suas comidas favoritas e passou horas acariciando seu pelo macio. Mas, apesar de seus esforços, o estado dela continuava a piorar.

Uma noite, enquanto a lua iluminava o céu, Maya deitou-se ao lado de Giuseppe. Ele a abraçou, sentindo seu coração bater lentamente. Com lágrimas nos olhos, ele sussurrou palavras de amor e gratidão, lembrando-se de todos os momentos que viveram juntos. Maya olhou para ele, como se entendesse cada palavra, e então fechou os olhos pela última vez.

A dor da perda foi avassaladora. A casa, que antes era preenchida com os risos e as brincadeiras de Maya, agora parecia vazia e silenciosa. Giuseppe caminhava pelos lugares onde costumavam brincar, sentindo a falta da alegria que a cadela trouxera para sua vida. Cada canto lembrava-o dela: o sofá onde ela costumava se aninhar, o parque onde corriam juntos, e até mesmo o quintal onde tantas vezes observaram o sol se pôr.

Os dias se tornaram semanas, e a tristeza de Giuseppe parecia não ter fim. Ele se perguntava como poderia viver sem sua fiel amiga. A vida, que antes parecia cheia de significado, agora era uma sombra do que era.

Mas, em meio à dor, Giuseppe começou a lembrar das lições que Maya lhe ensinou sobre amor e amizade. Ele decidiu que, embora ela não estivesse mais fisicamente ao seu lado, seu espírito e as memórias que compartilharam sempre viveriam em seu coração. Com isso, ele se dedicou a ajudar animais abandonados, fazendo o que pôde para dar a outros cães a mesma felicidade que Maya trouxe para sua vida.

A tristeza nunca desapareceu completamente, mas Giuseppe encontrou consolo na ideia de que Maya havia deixado um legado de amor. E, assim, em meio à dor, ele começou a reencontrar sua luz.

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Ia Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2024.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

A camundonga corajosa

 

Era uma vez...
Em um reino distante, havia uma pequena aldeia cercada por uma floresta mágica e misteriosa. Nessa aldeia, vivia uma camundonga chamada Matilda. Embora fosse pequena e frequentemente ignorada, Matilda tinha um coração valente e sonhava em fazer grandes coisas.

O Problema
Certa manhã, os habitantes da aldeia acordaram assustados. Uma bruxa malvada chamada Clotilde havia lançado um feitiço, transformando todos os animais da floresta em pedras. Ela estava furiosa porque os animais não a acatavam e decidiu punir a aldeia por sua desobediência.

Matilda, percebendo que seus amigos, como o sábio corvo Tomás e a gentil raposa Flora, estavam petrificados, decidiu que era hora de agir. Com coragem, ela se aproximou do ancião da aldeia e perguntou como poderia ajudar.

A Jornada
O ancião contou que a única maneira de quebrar o feitiço era encontrar o Cristal da Coragem, escondido na montanha mais alta do reino. Matilda sabia que a jornada seria perigosa, mas não podia deixar seus amigos assim.

Com um pequeno manto feito de folhas e um pedaço de queijo na mochila, Matilda partiu em direção à montanha. No caminho, encontrou Tomás, que, mesmo petrificado, ainda podia falar.

"Se você deseja quebrar o feitiço, não se esqueça de ser corajosa e gentil", aconselhou o corvo. Matilda prometeu que não se deixaria abalar, e continuou sua jornada.

O Encontro com a Bruxa
Ao chegar à montanha, ela encontrou a entrada de uma caverna escura. Com o coração acelerado, ela entrou e se deparou com Clotilde, que estava guardando o Cristal da Coragem.

"Quem ousa entrar em meu domínio?" gritou a bruxa, com um olhar maligno.

"Eu sou Matilda, e vim quebrar o feitiço que você lançou sobre os animais", respondeu a camundonga, tremendo, mas determinada.

Clotilde riu. "Você, uma simples camundonga? O que pode fazer contra um feitiço poderoso?"

Matilda respirou fundo e, em vez de medo, falou com firmeza: "Eu posso mostrar que a verdadeira coragem vem do coração, não do tamanho."

O Desfecho
A bruxa, intrigada pela bravura de Matilda, decidiu testá-la. "Se você realmente tiver coragem, enfrente três desafios, e então eu considerarei libertar os animais."

Os desafios eram perigosos: atravessar um rio cheio de crocodilos, resolver um enigma mágico e, por fim, encontrar uma flor rara que crescia em uma montanha íngreme.

Com a ajuda de sua astúcia e a coragem que brotava de seu coração, Matilda superou cada desafio. Ela usou seu pequeno corpo para se esgueirar entre os crocodilos, pensou cuidadosamente para resolver o enigma e, com determinação, escalou a montanha até encontrar a flor.

Impressionada, Clotilde finalmente entregou o Cristal da Coragem a Matilda. Com um gesto gentil, a camundonga quebrou o feitiço, e todos os animais voltaram à vida.

Matilda voltou à aldeia como uma heroína, e Clotilde, ao ver a bondade e coragem da pequena camundonga, decidiu mudar seu comportamento. Ela não mais usou magia para causar medo, mas sim para ajudar a aldeia.

E assim, a aldeia aprendeu que a verdadeira coragem não é medida pelo tamanho, mas pela força do coração.

Moral: 
A coragem e a bondade podem superar até mesmo os maiores desafios.

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Az
Imagem criada com Microsoft Bing

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

A Arte da Filinha: Uma Comédia da Vida Cotidiana


Ah, as filas! Essas longas serpentes de impaciência que se estendem como uma obra de arte moderna, sempre nos convidando a uma reflexão profunda sobre a condição humana. Se você pensa que a vida é feita de momentos gloriosos, experimente passar um dia inteiro na fila de um supermercado. Aí sim você vai entender o verdadeiro significado de “esperar”.

O supermercado, esse templo da alimentação onde, em teoria, você vai apenas comprar um pão e um litro de leite. Mas, ao entrar, você se depara com um labirinto de prateleiras e, claro, a fila do caixa. Você observa a cena: uma senhora, que parece ter saído de um filme de ação, está examinando cada item no seu carrinho como se fosse uma missão secreta. E ali está você, atrás dela, questionando suas escolhas: “Por que alguém precisaria de 17 pacotes de bolacha de água e sal?”

Enquanto isso, a jovem à sua frente está tentando pagar com um cartão que claramente já passou pela guerra. O caixa, que é um ser humano como você, tenta, com todas as suas forças, persuadir a máquina a aceitar aquele pedaço de plástico. E você, que estava apenas querendo um pão, agora se encontra em um drama digno de Shakespeare.

Saindo do supermercado, você pensa: “Pelo menos no banco as filas são mais organizadas.” Ah, ingênuo! A fila do banco é como um jogo de xadrez. Você se posiciona cuidadosamente, mas logo percebe que está cercado. À sua esquerda, um homem que parece ter uma consulta de emergência com o gerente, e à sua direita, uma mãe tentando explicar a importância da conta bancária para sua filha de cinco anos. “Não, querida, você não pode comprar um unicórnio com moedinhas.” O diálogo se arrasta, e você, que só queria sacar dinheiro, começa a imaginar a vida em uma ilha deserta.

E, claro, quando finalmente chega sua vez, o caixa está fora do ar. “Desculpe, o sistema está lento hoje.” Ah, o sistema! Essa entidade mística que nunca parece funcionar quando você mais precisa. Agora você se pergunta se é mais fácil sacar dinheiro de um caixa eletrônico ou se deve arriscar mais uma fila.

Ah, os caixas eletrônicos, essas máquinas que prometem a liberdade financeira, mas que muitas vezes se tornam um verdadeiro campo de batalha. Você se aproxima do caixa, triunfante, e aperta os botões como se estivesse jogando um videogame. Mas, claro, a máquina não reconhece seu cartão. “Cartão não identificado.” Que mistério! Você olha ao redor, esperando que alguém aponte a solução mágica, mas todos estão tão absortos em seus próprios dramas que você se sente como um personagem secundário em um filme sem roteiro.

E quando finalmente consegue fazer a transação, você se depara com a tela que pergunta: “Deseja realizar outra transação?” Você hesita, pensando: “Desejo, sim, mas não desejo ficar aqui mais um segundo.”

Depois do drama do banco e do caixa eletrônico, você decide que é hora de ir para casa. Mas, claro, o destino reserva mais uma fila para você: a do estacionamento. Você roda em círculos, como um hamster em uma roda, à procura de uma vaga. E quando finalmente encontra uma, tem que lidar com a arte de estacionar. O carro da frente parece ter sido estacionado por um artista surrealista, e você se pergunta se realmente precisa de uma licença de piloto para isso.

Uma vez estacionado, você se dirige à saída, apenas para se deparar com uma fila de pessoas tentando pagar seus tickets. O caixa, que parece ter saído de um filme de terror, tenta processar os pagamentos, mas a máquina de cartão está mais lenta que um caracol em um dia preguiçoso.

E assim, ao final de um dia repleto de filas, você volta para casa exausto, mas também um pouco mais feliz. Porque, no fundo, as filas são um microcosmo da vida. Elas nos ensinam paciência, resiliência e, claro, a arte de fazer amigos. Você pode até sair de uma fila com um novo conhecido, alguém que também estava preso no labirinto do supermercado ou tentando desvendar os mistérios do caixa eletrônico.

Portanto, da próxima vez que você se encontrar em uma fila, lembre-se: não é apenas uma espera. É uma oportunidade de rir, refletir e, quem sabe, fazer uma nova amizade. Afinal, o verdadeiro tesouro da vida pode muito bem estar escondido entre os carrinhos de compras e as máquinas de cartão. 

E se não estiver, pelo menos você terá uma boa história para contar!

                     Fonte: Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul 

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

A estrada e o coração

 Texto construído tendo por base a trova de Luiz Poeta (Luiz Gilberto de Barros) (Rio de Janeiro/RJ)
Na saudade intransigente,
o coração se revolta;
a estrada diz: – Segue em frente;
o coração pede: - Volta!

Era final de tarde quando Antero estacionou o carro no acostamento. O horizonte, tingido pelos tons dourados do pôr do sol, parecia tão distante quanto a paz que ele buscava. Naquela estrada deserta, as lembranças pesavam mais que a mala no porta-malas. Ele olhava fixamente para o asfalto que se perdia no infinito, como se esperasse que a resposta para sua inquietude surgisse na próxima curva.

Antero estava fugindo. Não de algo visível, mas de um vazio que havia tomado conta dele. Havia decidido, quase por impulso, deixar tudo para trás: o emprego, os amigos, a cidade. "É melhor recomeçar em outro lugar", dissera a si mesmo enquanto arrumava a bagagem. Mas agora, sozinho no meio do nada, a dúvida o corroía. Será que estava fazendo a coisa certa? Será que era possível deixar para trás o que o coração insistia em guardar?

Lá estava ela, a saudade. Intransigente, como sempre, invadindo cada pensamento. Fechava os olhos e via Márcia. O sorriso dela, o jeito como prendia o cabelo, as risadas que ecoavam pela casa. Tudo parecia tão perto, mas era inalcançável. 

Márcia tinha partido. Não por desamor ou desavença, mas porque a vida, com sua maneira cruel de agir, havia decidido que era hora de levá-la para sempre. Um acidente, um instante, e tudo o que Antero conhecia como felicidade havia se despedaçado.

Desde então, a saudade era sua companheira constante. E a saudade, ele descobrira, não era apenas um sentimento… era uma presença. Ela tinha cheiro, som e até peso. Era teimosa, não aceitava explicações, ignorava o tempo e se recusava a partir. Ele sentia que, a cada quilômetro que dirigia, a saudade ficava mais forte, como se o coração dele estivesse preso a um elástico invisível, puxando-o de volta.

Ele desceu do carro e se sentou na beira da estrada. O vento quente tocava seu rosto, mas não trazia consolo. Olhou para o horizonte mais uma vez, como se a estrada pudesse responder àquela luta interna que o consumia. A razão lhe dizia: "Segue em frente. É o único caminho." Mas o coração, rebelde e insistente, sussurrava: "Volta. Volta para onde tudo começou, para onde está o que te resta dela."

Antero pegou do bolso uma foto amassada de Márcia. Era do dia em que haviam feito uma viagem juntos, a primeira de muitas. Na imagem, ela sorria, com o cabelo bagunçado pelo vento e os olhos brilhando. Ele lembrou-se de como ela adorava dizer que as estradas eram metáforas da vida: "Elas sempre levam a algum lugar, Antero. Mesmo que a gente não saiba para onde."

"Mas e quando a estrada não faz sentido?" ele perguntou em voz alta, como se ela pudesse ouvi-lo. O eco de sua voz foi a única resposta.

O tempo passou devagar enquanto ele permanecia ali, imóvel, entre o passado que o puxava e o futuro que o empurrava. Até que, num momento de quietude, algo mudou. Ele percebeu que a saudade não era a inimiga. Ela era, na verdade, uma prova de que Márcia ainda vivia dentro dele, nas memórias, nos gestos, nos sonhos que haviam compartilhado. A saudade não era para ser combatida, mas entendida.

De repente, a estrada à sua frente parecia menos ameaçadora. Talvez ela estivesse certa; as estradas sempre levam a algum lugar. Talvez o futuro não fosse um abandono do passado, mas uma continuação dele. Ele levantou-se, respirou fundo e olhou uma última vez para a foto. Guardou-a no bolso, entrou no carro e ligou o motor.

Dessa vez, não era nem o coração nem a razão que o guiavam. Era Márcia, em cada lembrança, em cada saudade. Ele sabia que nunca a deixaria para trás, porque ela era parte dele — parte do caminho, parte da estrada.

E assim, com um misto de dor e esperança, ele seguiu em frente.
Fontes:
José Feldman. Caleidoscópio da Vida. Floresta/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

domingo, 14 de setembro de 2025

A melodia está no ar

 (Menção Honrosa no V Concurso Literário Foed Castro Chamma 2025, de Irati/PR - tema: Melodia)

Em uma pequena cidade, perdida entre montanhas verdejantes e rios caudalosos vivia Edilene, uma jovem apaixonada por música. Desde pequena, ela acreditava que o mundo ao seu redor era uma sinfonia invisível, repleta de melodias que poucos conseguiam ouvir.
 
Certa manhã, enquanto caminhava pelo parque, ela parou para escutar o canto dos pássaros que se misturava ao sussurro das folhas, formando um suave prelúdio. Inspirada, pegou seu caderno e começou a escrever as notas que sentia no ar.
 
Conforme os dias passavam, ela explorava diferentes lugares da cidade. No mercado, o tilintar das moedas e o riso das crianças criavam um ritmo alegre. Na beira do rio, o gorgolejar da água formava um solo tranquilo. Cada ambiente trazia uma nova melodia, e ela se dedicava a capturar cada uma delas.
 
Um dia, quando caminhava pelo parque, encontrou um músico idoso tocando violão. As cordas vibravam com uma profundidade que parecia conversar com a alma de quem passava. Edilene se aproximou, encantada. O homem, percebendo seu interesse, sorriu e disse:
 
— A música está em tudo, menina. Basta ouvir.
 
Ela sorriu de volta, entendendo que suas anotações não eram apenas notas, mas a essência da vida que a cercava. Ele, com seu violão, começou a tocar a melodia que ela havia coletado em suas andanças e anotara em seu caderno A cidade parou para ouvir. Os rostos se iluminaram, e pessoas começaram a dançar. A melodia que antes era invisível agora se manifestava em cada coração. Edilene percebeu que a música não era apenas algo que se tocava, mas uma experiência compartilhada.
 
A partir daquele dia, ela e o músico se tornaram inseparáveis. Juntos, eles continuaram a explorar a cidade, capturando novas melodias, unindo vidas e espalhando alegria. E assim, a pequena cidade se transformou em um grande concerto, onde cada som e silêncio contavam uma história. E, enquanto a vida seguia seu curso, Edilene aprendeu que a verdadeira magia da música está na capacidade de conectar as pessoas e fazer com que cada um ouça a melodia única que existe á sua volta.
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JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor, professor e gestor cultural. Formado em patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas de São Paulo. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Morou na capital de São Paulo, em Taboão da Serra/SP, em Curitiba/PR, em Ubiratã/PR, em Maringá/PR. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Confraria Brasileira de Letras, Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras Brasil/Suiça, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul (com trovas do mundo). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em poesias e trovas no Brasil e exterior. Publicações de sua autoria “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); “Canteiro de trovas”; “Pérgola de textos” (crônicas e contos), “Caleidoscópio da Vida” (textos sobre trovas) e “Asas da poesia”.

Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bi

sábado, 13 de setembro de 2025

A porta fujona

 
Era uma manhã ensolarada em um bairro tranquilo, onde a rotina dos moradores seguia em um compasso sereno. No entanto, na entrada de uma casa localizada em uma ladeira, um grupo de homens estava prestes a transformar essa tranquilidade em um espetáculo cômico. Eles eram os instaladores da nova porta de correr, e a expectativa era alta — uma porta de correr sempre traz um toque de modernidade!

Com a fita métrica em mãos e a serra elétrica zumbindo, os homens estavam concentrados na tarefa. Entre eles estava o chefe, um tipo bem-humorado chamado João, que sempre fazia piadas para aliviar a tensão. “Se essa porta fosse mais rápida, eu a contrataria para correr na maratona!” disse ele, rindo.

Após algumas tentativas e erros, a porta estava finalmente instalada, mas os homens, em um momento de distração e descoordenação, esqueceram de fixá-la corretamente. E, como se a própria porta tivesse vida, ela decidiu que era hora de uma aventura.

De repente, a porta escapuliu de suas garras e, com um estrondo, começou a deslizar ladeira abaixo. 

“Ei! Volta aqui!” gritou Carlos, o ajudante mais jovem, enquanto seus colegas se entreolhavam em estado de choque. 

A porta, agora em plena fuga, derrubou uma lata de lixo, espalhando garrafas e restos de comida por toda a calçada.

As pessoas que passavam, inicialmente perplexas, começaram a reagir. Uns corriam para se afastar da porta descontrolada, enquanto outros paravam para rir da cena inusitada. Uma senhora, com um gato no colo, soltou uma gargalhada tão alta que fez o animal pular e sair correndo.

Carlos e seus colegas, em uma corrida frenética, tentavam alcançar a porta. 

“Parece que a porta tem mais energia que a gente!” gritou Pedro, um dos instaladores que já estava sem fôlego. 

A porta continuava sua corrida, desgovernada, e a cada metro que descia, deixava um rastro de destruição. Bicicletas foram derrubadas, e um ciclista que vinha descendo a ladeira teve que se desviar, quase caindo ao chão.

“Isso é um verdadeiro filme de ação!” exclamou um morador que assistia a tudo de sua varanda, enquanto outros começavam a filmar a cena com seus celulares.

Em meio à confusão, um dos homens, o robusto Roberto, decidiu que seria o herói do dia. Ele viu a porta se aproximando e, em um impulso, lançou-se na direção dela como um jogador de futebol, tentando agarrá-la. Mas a porta, indiferente aos seus esforços heroicos, continuou deslizando. Roberto ficou agarrado na borda, sendo arrastado ladeira abaixo como um brinquedo de criança.

“Me solta! Me solta!” ele gritava, enquanto a porta ignorava seu apelo, correndo mais rápido do que ele. O grupo de instaladores, agora em uma verdadeira missão de resgate, corria atrás deles, com gritos de desespero.

Finalmente, após o que pareceu uma eternidade, a porta encontrou um obstáculo: uma árvore robusta. Com um baque surdo, ela colidiu contra o tronco e parou abruptamente. Roberto, aliviado, se desvencilhou da porta, caindo no chão com um suspiro de alívio e uma expressão que misturava cansaço e incredulidade.

Os homens se reuniram ao redor da porta, agora paralisada, e começaram a rir descontroladamente. 

“Acho que ela estava apenas procurando uma nova casa!” comentou Carlos, enquanto todos riam para aliviar a tensão.

Aquela manhã, que havia começado como um simples dia de trabalho, se transformou em uma memória inesquecível para todos os presentes. E, claro, a ladeira nunca mais seria vista da mesma forma. Para os moradores, a porta de correr que havia fugido se tornaria uma lenda local — a história da porta que decidiu dar uma volta.
Fontes:
José Feldman. Pérgola de Textos. Floresta/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

O mistério da floresta encantada

 
Era uma vez, em uma pequena aldeia cercada por uma densa floresta, uma mulher carinhosa chamada Dona Benta, conhecida por suas delícias culinárias e por cuidar de todos na comunidade. Ela também tinha um profundo amor pela natureza. 

Todos os dias, Dona Benta caminhava pela floresta, admirando as árvores majestosas e os pássaros que cantavam alegremente.

Um dia, enquanto colhia ervas para fazer um chá, ela percebeu que algo estava errado. As árvores estavam murmurando, e o vento parecia sussurrar um aviso. Intrigada, ela decidiu investigar. Com seu cesto cheio de ervas, seguiu o som até uma clareira iluminada pelo sol.

Lá, encontrou Saci, o menino travesso de uma perna só, que estava fazendo travessuras com algumas folhas secas. Ele estava tão concentrado em suas brincadeiras que não percebeu a chegada de Dona Benta.

— Saci! — chamou ela. — O que você está fazendo aqui?

— Ah, Dona Benta! — respondeu ele, dando uma pirueta. — Estou tentando fazer uma poção mágica para fazer as folhas dançarem! Mas parece que as árvores estão tristes. Você percebeu?

Dona Benta assentiu, preocupada.

— Sim, Saci. Algo está acontecendo com a floresta. Precisamos descobrir o que é.

Nesse instante, um ruído ecoou entre as árvores, e o Curupira, guardião da floresta, apareceu, seus cabelos flamejantes brilhando sob os raios de sol. Ele tinha uma expressão séria.

— Olá, Dona Benta, Saci. A floresta está em perigo! Os homens estão cortando árvores sem parar, e os animais estão fugindo. Se não fizermos algo, perderemos este lugar encantado.

Dona Benta, com seu coração bondoso, decidiu que não poderia ficar parada. Juntos, eles formaram um plano. Saci usaria suas travessuras para distrair os homens que estavam desmatando, enquanto Dona Benta e Curupira procurariam uma solução mais permanente.

Na manhã seguinte, o Curupira criava ilusões, fazendo com que os madeireiros se perdessem entre as árvores. Quando eles tentavam seguir um caminho, mudava a direção das trilhas, levando-os a lugares inesperados. Ele usava o vento para sussurrar avisos às árvores e aos animais, alertando-os sobre a presença dos madeireiros. Isso ajudava os animais a se afastarem e evitarem perigos.

O Saci era conhecido por sua habilidade de fazer objetos desaparecerem. Ele escondia ferramentas e equipamentos dos madeireiros, fazendo com que eles não conseguissem trabalhar. Emitia risadas altas e sons estranhos que assustavam os trabalhadores, fazendo com que eles se sentissem inseguros.

Enquanto isso, Dona Benta preparou uma deliciosa refeição com ingredientes da floresta. Ela sabia que a comida poderia unir as pessoas.

Convidou os aldeões para um grande banquete em sua casa, onde serviu pratos feitos com os frutos e ervas da floresta. Durante a refeição, começou a falar sobre a importância de preservar a natureza, mostrando como a floresta era essencial para a vida de todos.

— Se continuarmos a desmatar, — disse Dona Benta, — não teremos mais água limpa, ar puro e alimentos frescos. Precisamos cuidar do que temos!

Os aldeões, tocados pela sabedoria de Dona Benta, começaram a entender a gravidade da situação. Eles decidiram se unir e proteger a floresta. 

No dia seguinte, armados com ferramentas e determinação, foram até a clareira onde os homens cortavam as árvores.

Com a ajuda de Saci, que continuava a confundir os madeireiros, e do Curupira, que se manifestava como eco e vento, os aldeões conseguiram impedir o desmatamento. Juntos, formaram um círculo em volta das árvores que ainda estavam de pé, cantando e dançando em celebração à vida.

Os madeireiros, confusos e assustados, foram embora, e a floresta voltou a respirar aliviada. 

Com o tempo, os aldeões aprenderam a viver em harmonia com a natureza. Plantaram novas árvores e criaram um jardim comunitário, onde todos podiam colher as bênçãos da floresta sem destruí-la.

E assim, com a ajuda de Dona Benta, do travesso Saci e do protetor Curupira, a floresta encantada prosperou, e os habitantes da aldeia aprenderam a respeitar e preservar a beleza natural ao seu redor. A amizade entre eles e a natureza se fortaleceu, e a floresta nunca mais esteve em perigo.

E sempre que alguém caminhava pela floresta, o riso de Saci, as chamas do cabelo do Curupira brilhantes, lembrava que a verdadeira magia estava na preservação e no cuidado com o mundo ao nosso redor.
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JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor, professor e gestor cultural. Formado em patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas de São Paulo. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Morou na capital de São Paulo, em Taboão da Serra/SP, em Curitiba/PR, em Ubiratã/PR, em Maringá/PR. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Confraria Brasileira de Letras, Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras Brasil/Suiça, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul (com trovas do mundo). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em poesias, trovas, crônicas e contos no Brasil e exterior.
Publicações de sua autoria “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); “Canteiro de trovas”; “Pérgola de textos” (crônicas e contos), “Caleidoscópio da Vida” (textos sobre trovas) e “Asas da poesia”.

Fontes:
José Feldman. Pérgola de Textos. Floresta/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

À sombra do lago

 Texto construído tendo por base os versos de Edy Soares (Vila Velha/ES):
Lembrança doce e singela
enchendo o peito de afago:
eu e meu pai na pinguela,
jogando pedras no lago…
Na pequena cidade de Ribeirão Verde, havia um lago que parecia ter saído de um conto de fadas. Suas águas eram calmas e refletiam o céu azul em dias ensolarados, enquanto as árvores em volta dançavam suavemente ao vento. Era um lugar mágico, onde as crianças corriam livres e as memórias se formavam como nuvens no céu. Para Benjamim, o lago era mais do que um simples corpo de água, era um espaço sagrado, um refúgio de lembranças que guardava momentos preciosos ao lado de seu pai.

Certa tarde de verão, quando Benjamim ainda era uma criança, seu pai decidiu que era hora de o levar até a pinguela, uma pequena ponte de madeira que se estendia sobre o lago. Ele sempre dizia que aquele era o melhor lugar para jogar pedras na água e ver as ondas se espalharem como um abraço de boas-vindas. Com um sorriso no rosto, pegou sua mão e seguiram juntos pela trilha que levava ao seu destino.

A pinguela, com suas tábuas desgastadas pelo tempo, rangia sob os pés deles, mas para Benjamim era um som familiar, como uma canção que só os dois conheciam. Seu pai, com seu chapéu de palha e seu jeito despreocupado, era a personificação da alegria. Ele o ensinou a escolher as pedras mais lisas, aquelas que pulavam na superfície da água. “Olhe bem, meu filho. A pedra precisa ter o formato certo. E você deve arremessá-la com confiança”, ele dizia, enquanto Benjamim o observava com admiração.

Esse ritual de jogar pedras era mais do que uma simples brincadeira; era um momento de conexão. Cada pedra que lançavam parecia levar consigo um pedaço de suas preocupações e medos. Benjamim lembrava de como seu pai ria quando uma pedra pulava várias vezes antes de se afundar. “Veja! Essa foi uma campeã!”, ele exclamava, e o garoto ria junto, sentindo a felicidade vibrar em meu peito.

Naquele dia, enquanto jogavam pedras, ele começou a contar histórias de sua infância. Falou sobre os verões que passara pescando com seu pai e como ele mesmo tinha aprendido a escolher as melhores pedras. A cada risada, a cada história compartilhada, o coração de Benjamim se enchia de afeto. A presença do seu pai era um abrigo seguro, e nada parecia mais importante do que aqueles momentos simples à beira do lago.

Com o passar do tempo, Benjamim foi crescendo, e as responsabilidades da vida começaram a se acumular. A escola, os amigos, e mais tarde, o trabalho, foram ocupando seu tempo e sua mente. As visitas ao lago tornaram-se menos frequentes, e a pinguela, uma doce lembrança da infância, foi se tornando apenas uma imagem distante. Mas, em seu coração, ele sabia que aquelas memórias estavam guardadas como um tesouro inestimável.

Anos depois, ao receber a notícia de que seu pai não estava bem, uma onda de nostalgia o invadiu. Lembrou-se da pinguela, das pedras e das risadas. Naquele momento, percebeu que precisava voltar àquele lugar que tanto significava para eles. Assim que pode, organizou uma viagem para Ribeirão Verde.

Chegando lá, encontrou o lago como lembrava, mas a pinguela parecia ter envelhecido. As tábuas estavam mais desgastadas, e o vento parecia sussurrar histórias do passado. Com o coração apertado, se aproximou da beira da água e, por um instante, fechou os olhos. As memórias vieram à tona como se estivesse lá novamente, lançando pedras com seu pai, rindo e aprendendo sobre a vida.

Sentou-se na beira do lago, e as lágrimas escorriam pelo seu rosto. Ele sabia que precisava de um momento de conexão, mesmo que seu pai não estivesse fisicamente presente. Compreendeu que as memórias que guardava eram o verdadeiro legado dele. Com um gesto automático, pegou algumas pedras do chão e começou a jogá-las na água, como faziam antes. Cada arremesso trazia de volta um fragmento do passado, um eco das risadas e das lições.

Neste reencontro com o lago, percebeu que, embora seu pai não estivesse mais ao seu lado, ele continuava vivo nas lembranças doces e singelas que preenchiam seu peito. Ele havia lhe ensinado a importância de valorizar os momentos simples, de encontrar alegria nas pequenas coisas, e naquele dia, ao jogar pedras, ele sentia sua presença como se ele estivesse o guiando novamente.

Enquanto o sol se punha no horizonte, tingindo o céu de laranja e rosa, percebeu que a vida era feita de ciclos. Embora a dor da ausência fosse aguda, as lembranças eram um bálsamo que aliviava a saudade. Com cada pedra que lançava, Benjamim dizia um silencioso “obrigado” ao seu pai, por todas as lições e por cada momento que compartilharam.

Aquela tarde no lago lhe trouxe paz. Compreendeu que a pinguela, as pedras e o lago eram mais do que apenas um cenário, eram símbolos da relação que tiveram e do amor que ainda vive nele. Ao sair daquele lugar, Benjamim levou consigo uma nova certeza: mesmo na ausência física, as memórias permanecem vivas, e o amor nunca se apaga.

E assim, ao voltar para casa, seu coração estava mais leve. Ele sabia que, sempre que precisasse, poderia retornar àquela pinguela, onde as lembranças doces e singelas enchiam seu peito de afago, lembrando-se de que, mesmo na solidão, nunca estamos realmente sozinhos.
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JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor, professor e gestor cultural. Formado em patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais. Morou na capital de São Paulo, em Taboão da Serra/SP, em Curitiba/PR, Ubiratã/PR, Maringá/PR. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia de Letras de Teófilo Otoni, etc, possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria, Voo da Gralha Azul (com trovas do mundo). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações de sua autoria “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); e “Canteiro de trovas”.. No prelo: “Pérgola de textos” (crônicas e contos) e “Asas da poesia”

Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

As Sombras da Solidão

  ( a crônica abaixo, infelizmente, são fatos comuns hoje em dia, alguns elementos a mais fazem parte desta história, mas boa parte deles fa...