segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

As Sombras da Solidão

 

(a crônica abaixo, infelizmente, são fatos comuns hoje em dia, alguns elementos a mais fazem parte desta história, mas boa parte deles fazem parte do cotidiano de muitos outros idosos)

Seu nome é Lúcio, um homem que aos 71 anos de idade, vive sozinho em uma pequena casa no interior do Paraná. Para muitos, sua vida pode parecer simples ou até mesmo pacata. Mas, para ele, cada dia é uma batalha silenciosa contra a solidão. Durante mais de uma década, sua única companheira tem sido Sol, uma cadela, que, com seu olhar amoroso e sua presença constante, é a única luz nesta escuridão.

Dezembro chega com a sua fanfarra de luzes cintilantes e sorrisos forjados, uma estação de rádio que só toca a melodia da sua solidão. A proximidade das festas de final de ano não traz alegria; traz uma maré crescente de desânimo e uma depressão silenciosa que se senta com ele à mesa de jantar vazia. Uma onda de melancolia toma conta. É uma época em que todos parecem se reunir; os sorrisos, as luzes, os abraços calorosos. Mas ali, dentro das quatro paredes de sua casa, a realidade é bem diferente. As ruas decoradas e cheias de vida contrastam bruscamente com o vazio do seu lar. Seus familiares, que vivem longe em outro estado, nunca vêm para o visitar. Suas desculpas são sempre as mesmas: “Não posso agora; estou ocupado”, “O trânsito é terrível nessa época”, “É muito longe”. A verdade, que ele já conhece, é que não há espaço para ele na vida deles.

Desde a morte de sua mãe, sete anos atrás, sentiu como se um pano escuro tivesse sido puxado sobre sua existência. Ela era seu porto seguro, a única que o entendia sem precisar de palavras. Com a sua partida, um pedaço dele se foi, e com ele, a conexão com o resto da família. Ele só queria um toque humano, uma palavra amiga, alguém que dissesse que se importava. Mas, em vez disso, o eco do silêncio se tornou seu único familiar.

O casamento com Clara não sobreviveu ao peso das expectativas e dos sonhos desfeitos. Quando conversava com ela, sentia o abismo entre eles, maior que qualquer distância física. Ela fala com um tom sereno, mas em suas palavras há uma nota de superioridade que o fere, quase como se ele fosse um projeto inacabado em comparação aos seus sucessos. Por Lúcio não ter um diploma universitário, a seus olhos era apenas um homem que fracassou em vários aspectos da vida. Ela tem o seu diploma universitário, a sua carreira, a sua vida estruturada, e não perde a oportunidade de lhe fazer sentir a sua falta de instrução. As conversas são um exercício de paciência; ela fala sobre as conquistas e seu trabalho, e ele escuta, tentando encontrar sua voz entre as lembranças que a cercam. Em dias como esses, a saudade se mistura com um profundo desânimo. É uma dança estranha: enquanto ela compartilha sua vida, ele é um espectador, preso em polaroides de um passado que não consegue mudar. Apesar disso, se mantém conectados, a sua conexão distante com o resto do mundo. Neste momento, ela é a ponte que liga seu presente ao passado, embora ele saiba que essa ponte balança sob o peso de suas frustrações.

Sol, por outro lado, não se importa com diplomas ou conquistas. Para ela, ele é suficiente. Quando olha nos olhos dela, percebe que, apesar da dor e da solidão, é amado de uma maneira pura e verdadeira. Ela não sabe das cicatrizes que ele carrega, dos fantasmas que habitam a sombra de sua vida. Para ela, não importa se o Natal não terá presentes, árvores decoradas ou ceias fartas. O que importa é estarem juntos, no calor do seu pequeno lar, onde ele faz o melhor que pode para garantir que ela se sinta amada tanto quanto ele sente.

Refletindo sobre todos esses anos, recorda de um tempo em que também foi pai. Sua filha, Yasmin, que não viveu o suficiente para conhecer o mundo, deixou uma cicatriz que nunca se apagará. Ela foi brutalmente levada dele com apenas alguns meses de vida, O destino, porém, tinha planos cruéis. A sua menina, a sua preciosa filha, foi-lhe tirada de forma brutal, assassinada com apenas alguns meses de vida. Suas esperanças, sonhos e anseios se desfizeram em um instante, como se um vendaval tivesse passado e levado tudo que ele mais amava. A dor foi insuportável. A mãe, Najla, a mulher que ele amava, afundou na escuridão da sua própria dor. A perda dela foi o último golpe, e ela decidiu que não queria mais viver, preferindo a escuridão eterna à dor insuportável da realidade. Enquanto a via partir, entendeu que a vida era feita de uma montanha-russa de alegrias e tristezas, mas ele parecia viver só a parte mais pesada da queda, deixando-o num desespero que ainda hoje molda o seu ser. Esse capítulo da sua vida é uma ferida que nunca cicatriza, um lembrete constante da fragilidade da felicidade.

Agora, aqui está, um homem de 71 anos que vive cercado por sombras do passado. À medida que o Natal se aproxima, as memórias se tornam mais intensas: o cheiro da comida que sua mãe preparava, os cafés à tarde, as brincadeiras que ecoavam pela casa, o calor dos abraços de sua esposa. Essas lembranças são tanto o seu consolo quanto a sua condenação. O tempo não apagou a dor, ele apenas a tornou parte de quem é.

Nesta véspera de Natal, enquanto Sol se aconchega ao seu lado no sofá, sente a solidão se instalar ao seu redor. Neste momento, não tem presentes para dar. Não há árvores cheias de enfeites, nem laços coloridos. Passarão as festas juntos, no silêncio da sua casa, observando o mundo lá fora celebrar uma união que não lhes pertence. Ao invés disso, o que há é a promessa de mais um dia juntos, uma certeza que, apesar de tudo, traz um leve sorriso aos seus lábios. Ao olhar pela janela, as luzes piscantes da cidade não lhe atraem mais. Em vez de me lembrar do que perdeu, sente uma alegria ainda que transitória de estar com seu amor maior, sua cadela Sol.

Percebe que, mesmo sem a presença da família, tem Sol, sua única família presente, verdadeira, que sempre estará ao seu lado, com seu amor incondicional. Ela é a única razão pela qual ainda levanta da cama todos os dias. Ela é o seu raio de sol que lhe aquece as manhãs.

Eles, na certa, se aconchegarão em um canto do sofá, com um filme antigo na televisão e o coração esperançoso, mesmo que ligeiramente quebrado. Porque a vida, com todas as suas durezas, ainda tem seus pequenos momentos de alegria. E enquanto Sol estiver ali, ele não estará completamente sozinho.

Ah, como gostaria de viver por um momento, a festa que tanto anseia. Mas o que ele tem é uma xícara de café e a alegria simples que Sol traz para os seus dias.

Afinal, Lúcio e Sol são uma dupla imbatível, navegando em mares de solidão. E quando der meia-noite na certa ficarão deitados lado a lado como dois seres que se amam muito e esperando o sono os levar a um mundo de sonhos, de felicidade, de amor, de amizade, de espíritos livres.

No final, o que mais poderia desejar além disso? Um amor simples, uma amizade leal, e a esperança de que um dia, as sombras do passado possam dar lugar a dias mais iluminados. Para ele, isso deve ser suficiente.
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os nomes foram modificados para preservar suas identidades
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JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor, professor e gestor cultural. Formado patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas de São Paulo. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais e oficina de trovas. Morou 40 anos na capital de São Paulo, onde nasceu, ao casar-se mudou para o Paraná, radicando-se em Maringá/PR. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a Confraria Luso-Brasileira de Trovadores (SP), Academia Rotary de Letras, Artes e Cultura (SP), Academia Movimento União Cultural (SP), Academia Virtual Brasileira de Trovadores (RJ), Confraria Brasileira de Letras (PR), Academia de Letras de Teófilo Otoni (MG), Academia de Letras Brasil-Suiça (em Berna), Casa do Poeta "Lampião de Gaz" (SP), . Possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007, Voo da Gralha Azul (com trovas de trovadores vivos e falecidos). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em crônicas, contos, poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações: 
Publicados: “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); “Canteiro de trovas”.
Em andamento: “Pérgola de textos”, "Chafariz de Trovas", “Caleidoscópio da Vida” (textos sobre trovas), “Asas da poesia”, "Reescrevendo o mundo: Vozes femininas e a construção de novas narrativas".

Fonte: José Feldman. Caleidoscópio da Vida. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2025.
Imagem obtida com Microsoft Bing

sábado, 6 de dezembro de 2025

O Crepúsculo dos Justos


A cidade roncava lá fora, um organismo indiferente feito de buzinas e pressa. Dentro das paredes que um dia abrigaram risadas fartas e jantares de fim de semana, agora reinava um silêncio pesado, quebrado apenas pelo tique-taque melancólico de um relógio de pêndulo. Ali vivia Horácio, um homem que a vida havia dobrado, mas não quebrado — pelo menos não até agora.

Horácio era a personificação da generosidade. Um homem cuja biografia poderia ser escrita com os gestos de bondade que dedicou a todos ao seu redor. Divorciado há uma década, ele investiu o restante de suas energias em amigos que ele considerava sua família estendida. Ele era o ombro para chorar, o caixa para emprestar dinheiro sem juros e o motorista do dia e da noite. Dedicação incondicional. Amor em sua forma mais pura e desinteressada.

Mas o tempo é um cobrador impiedoso. A idade é implacável, o corpo de Horácio começou a falhar antes do espírito. O caminhar virou arrastar, a memória, uma peneira fina onde os nomes recentes se perdiam, e a independência, uma miragem distante. Ele precisava de cuidados, de presença, de uma mão que o guiasse no labirinto da velhice frágil.

Foi então que a verdadeira face da "amizade" começou a se revelar, não em um ato de traição, mas no silêncio ensurdecedor da omissão.

A reunião aconteceu na sala de estar, a mesma sala onde, anos atrás, eles brindavam a aniversários e conquistas. Estavam lá Mário, o empresário a quem Horácio tirou do buraco da falência; Lúcia, cuja faculdade foi paga com um empréstimo que jamais foi cobrado; e Beto, o afilhado que Horácio ensinou a andar de bicicleta e a viver com dignidade.

A conversa começou com eufemismos, palavras polidas que tentavam mascarar a crueza do abandono.

"Horácio, pensamos muito em você", começou Mário, ajustando os óculos caros. "Você precisa de um lugar com mais estrutura, com médicos 24 horas por dia."

"Sim, um lar de idosos", completou Lúcia, olhando para as próprias unhas. "Lá tem atividades, outros velhinhos para conversar... é melhor para o seu astral."

"É o melhor para você, padrinho", Beto tentou, evitando o olhar mareado do velho.

Eles falavam de "lares" e "clínicas de repouso" com a mesma naturalidade que se fala de um resort de férias. O eufemismo era a cortina de fumaça para a verdade brutal: eles não queriam a responsabilidade. A gratidão tinha prazo de validade. As promessas de "para sempre amigos" se dissolviam diante da perspectiva de trocar fraldas, agendar médicos ou, pior, abrir mão de uma hora de sua vida ocupada para simplesmente fazer companhia a Horácio.

Horácio não discutiu. Ele apenas ouviu. E em cada palavra vazia, sentiu o peso da rejeição cair sobre seus ombros já curvados. O asilo não era uma solução de cuidado; era uma solução de descarte.

Naquela noite, sozinho em seu quarto, Horácio encarou o espelho. Não viu o homem generoso que dedicou sua vida aos outros, viu apenas um estorvo, uma bagagem que seus amigos — sua suposta família — estavam ansiosos para despachar.

O descaso é uma forma de violência silenciosa, um veneno de ação lenta. A atitude deles não apenas minou sua saúde física, mas aniquilou seu espírito. A autoestima de Horácio, que sempre se baseou em seu valor como pilar de apoio para os outros, desabou. Ele se sentiu o homem mais solitário e mal-amado do mundo.

A rejeição doeu mais do que a artrite nos joelhos ou a falha da memória. Doeu na alma. A ingratidão daqueles a quem ele amou incondicionalmente transformou seus últimos anos em um inverno perpétuo.

Ele não foi para um asilo. Foi para um depósito. Um depósito de memórias, onde o amor que ele distribuiu jazia esquecido, e onde a única companhia era a sombra da solidão, tecida pela indiferença daqueles que um dia chamou de amigos. 

A crônica da sua vida terminou não com um rugido, mas com o sussurro triste de um adeus silencioso a um mundo que ele amou, mas que se recusou a amá-lo de volta quando ele mais precisava.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Ecos da Violência em um Mundo em Desacordo


 Vivemos em tempos em que a dor e o terror parecem estar cada vez mais entrelaçados em nosso cotidiano. As guerras se multiplicam como ervas daninhas, brotando em qualquer parte do mundo onde líderes, ávidos por poder e controle, não hesitam em sacrificar a paz em nome de ambições pessoais. É um espetáculo trágico, onde o valor da vida é reduzido a meras estatísticas, enquanto as balas e os bombardeios ressoam como uma sinfonia macabra, privando a vida de milhares de pessoas sem um respingo de amor pela vida humana.

A televisão, um dos principais meios de formação de opinião e comportamento, tornou-se um campo de batalha onde a violência é glorificada. Os programas que atraem a atenção dos jovens estão recheados de cenas grotescas, onde vampiros e zumbis dominam narrativas que banalizam a morte e o sofrimento. Entre uma série e outra, há uma programação que mistura a ficção mais aterrorizante com os realities mais cruéis, trazendo uma nova forma de entretenimento que, na verdade, reflete uma sociedade em profunda crise. Enquanto a realidade clama por vozes de justiça e compaixão, enredamo-nos em histórias que alimentam a violência ao invés de promover a compreensão.

Os ecrãs se tornam janelas para um abismo que ecoa sentimentos destrutivos. As crianças e adolescentes, diante desses conteúdos, modelam suas perspectivas e comportamentos. Ao invés de imaginarem um mundo repleto de possibilidades pacíficas, absorvem uma visão distorcida, onde a força e a agressão se tornaram a norma. As conversas que poderiam girar em torno do amor e da solidariedade são substituídas pela retórica do “nós contra eles”, perpetuando barreiras que deveriam ser destruídas.

Nos séculos passados, a humanidade fez progressos impressionantes em ciência e tecnologia. As inovações nos conectaram de maneira que nunca antes se viu. Contudo, essa mesma evolução parece despontar uma falência moral. A arte e a educação, potências para o desenvolvimento humano, são frequentemente ofuscadas pelo brilho da violência. O retrato atual é o de uma sociedade em que a empatia e o respeito pelo próximo parecem resquícios de um passado que não se revisitou.

E em meio a essa turbulência, as mulheres continuam a ser tratadas como objetos, corpos que, em muitas culturas, são vistos como prêmios em disputas, ou vítimas em circunstâncias que escandalizam os mais sensíveis. Em um mundo que deveria ser de igualdade, a misoginia ainda ressoa com força, como se houvesse um consenso silencioso de que suas vidas têm menor valor. Assistimos a atos brutais, discursos odiosos e uma cultura que perpetua a ideia de que é aceitável desumanizar a mulher. O que é mais chocante: o ato em si ou a indiferença que o rodeia?

As novas gerações erguem-se sob o peso desse legado de desamor e agressão. É desesperador pensar que, ao invés de estarmos moldando um futuro de paz, estamos semeando as sementes da discórdia e da intolerância. O mundo digital, que poderia ser uma plataforma de troca de ideias e construção de pontes, acaba se tornando um terreno fértil para o ódio e a divisão.

Entretanto, há uma esperança latente. Cada crise traz consigo uma oportunidade de reflexão e transformação. É possível que as vozes que clamam por paz e por equidade ganhem força em meio ao ruído ensurdecedor da violência. Educadores e artistas têm um papel fundamental na reconstrução do tecido social. É através da arte que podemos inspirar mudança, e por meio da educação que podemos abrir os olhos das futuras gerações, mostrando que um mundo baseado no respeito e na empatia é não apenas desejável, mas possível.

A verdadeira evolução não está apenas nas máquinas que criamos, mas na capacidade de nos entendermos e apoiarmos uns aos outros. A resistência à violência começa com pequenos atos de bondade, com diálogos abertos sobre as verdades que nos machucam e com um compromisso coletivo de construir um futuro que respeite a dignidade de todos.

Que possamos, então, ser agentes de mudança nesse cenário nebuloso, ampliando a luz em vez de alimentar a escuridão. Porque no fim, a verdadeira luta é aquela que travamos no interior de nós mesmos. A guerra que queremos vencer não é contra um inimigo distante, mas contra os preconceitos e as barreiras que nos afastam um dos outros. Se de fato quisermos um amanhã, cabe a nós plantarmos as sementes dessa revolução silenciosa e poderosa.
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JOSÉ FELDMAN, poeta, trovador, escritor, professor e gestor cultural. Formado em patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas de São Paulo. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais e oficinas de trovas. Morou 40 anos na capital de São Paulo, onde nasceu, ao casar-se mudou para Curitiba/PR, radicando-se em Maringá/PR, cidade onde sua esposa é professora da UEM. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence à Confraria Luso-Brasileira de Trovadores. Possui os blogs Singrando Horizontes desde 2007 e Voo da Gralha Azul (com trovas de trovadores vivos e falecidos). Assina seus escritos por Floresta/PR. Dezenas de premiações em crônicas, contos, poesias e trovas no Brasil e exterior.
Publicações: 
Publicados: “Labirintos da vida” (crônicas e contos); “Peripécias de um Jornalista de Fofocas & outros contos” (humor); “35 trovadores em Preto & Branco” (análises); “Canteiro de trovas”.
Em andamento: “Pérgola de textos”, "Chafariz de Trovas", “Caleidoscópio da Vida” (textos sobre trovas), “Asas da poesia”, "Reescrevendo o mundo: Vozes femininas e a construção de novas narrativas”

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Cookie (Negão)


 Há nomes que trazem peso só de serem pronunciados. Cookie — o Negão — carregava esse peso com a dignidade de quem sabe que a sombra também é parte da luz. Nasceu em Curitiba, em 10 de outubro de 2000, fruto do encontro entre Nuhtara Dahab, a siamesa e Floco de Neve, o angorá conhecido como Floquinho. Dele e do irmão Cotton Candy, cada um herdou uma porção do costume de ser: o Branco acomodado e macio; o Negão imponente, atento, dono de um porte que parecia anterior ao próprio nome.

Negro no corpo, porém às vezes rubro sob a incidência do sol, Cookie tinha essa qualidade única que só se revela aos que o veem muitas vezes: a pelagem parecia guardar um segredo de cores, como se a luz contasse histórias que ele mantinha para si. Era um preto que aceitava as nuances e mostrava, sem pressa, seus recantos. Isso, de certa forma, era semelhante ao seu temperamento: à primeira vista fechado e imponente, tinha sutilezas que se revelavam aos poucos — afeto contido, heroísmo discreto, uma generosidade de presença que não precisava de palavras.

Com a morte do pai, quando a casa estava aos cuidados da mãe, Cookie assumiu o posto ao lado dela. Nuhtara e ele formaram uma dupla que impunha respeito sem criar medo. Eram a lei e a misericórdia ao mesmo tempo: ele enfrentava quem fosse quando preciso — e enfrentava com uma firmeza que raramente se transformava em violência gratuita. Nunca me lembro de uma briga feia com ele como protagonista; havia, sim, confrontos que ele sabia resolver com olhares, posicionamento e autoridade. Liderança, afinal, não é somente força: é também proporção, timing e a paciência de quem sabe quando intervir.

Cookie era, ao mesmo tempo, um líder e um cuidador. Não teve filhos — foi castrado —, mas foi pai de tantas outras que a palavra pai lhe assentava como título. Quando a Biba entrou em depressão, eu trouxe-a para o meu quarto com a tarefa de aconchegá-la e fazê-la sentir mais segura. Cookie pareceu entender essa necessidade como quem reconhece um ofício sagrado: ficou deitado com ela, sempre por perto, mantendo uma vigilância calma. Eles dormiam juntos; havia entre eles uma intimidade que lembrava os arranjos das famílias que se sustentam por afinidade mais do que por laços de sangue. Era lindo vê-los, lado a lado, compondo uma imagem de proteção.

Ele era extrovertido na medida certa. Gostava de presença, de ser visto, de fazer-se notar. E aí residia sua graça: a mesma personalidade que assumia liderança também sabia se recolher e deixar que a ternura fluísse. Quando eu me deitava, vinha aquele hábito que eu tanto adorava: Cookie se esfregava na minha mão, suavemente, e mordiscava como quem lembra da infância — mordidas leves, que não feriam, só marcavam o afeto. Era um gesto antigo e íntimo, de pertencimento. Às vezes me mordiscava: brincadeira ou sinal de atenção. Sempre entendia como um convite ao contato.

Mas havia uma realidade física que marcava a presença dele: a obesidade. Era um gato grande, pesado — cerca de 12 quilos — e o peso dele fazia parte do seu caráter: corpulento, de passos decididos, praticamente um sofá ambulante quando se acomodava. Gostava do guarda-roupa do meu quarto, de se empoleirar lá em cima e, com o salto certeiro, cair na cama como quem faz um pouso planejado. Ficava pendurado às vezes no guarda-roupa nas patas dianteiras, e eu tinha a tarefa rotineira de empurrá-lo para cima. A cena trazia riso e cuidado: um corpo enorme equilibrando-se entre mobiliário e o desejo de ter o melhor lugar do quarto. Quando eu estava deitado, ele pulava do guarda-roupa direto para a cama; eu, conhecendo o peso do salto, me afastava para não ser esmagado. Que gato pesado, "vixi" — e, ao mesmo tempo, tão querido que ninguém reclamava quando ele ocupava todo o espaço disponível.

Cookie também tinha uma relação incomum com as cadelas do quintal: saía e deitava-se com elas; elas o adoravam e lambiam-no como se aquele fosso entre espécies não existisse mais. Era como ver velhos amigos reencontrando-se — o grande gato preto ao lado das cadelas, partilhando o sol, partilhando cochilos. Ele era o chefe que aceitava alianças, que permitia ternura mútua. Ninguém melhor do que ele para manter a ordem e a paz entre tantas vozes diferentes.

A morte dele foi brusca, no meio de um movimento confuso. Em 1º de março de 2011, em Ubiratã, durante a mudança, o medo tomou conta. O mundo que ele conhecia virou um lugar de barulho e incerteza; assustado, subiu no telhado — e a queda foi fatal. O corpo grande e pesado não resistiu ao impacto. Foi um fim que cortou a sala em dois: de um lado as memórias de risos e ternura, de outro o espaço vazio onde ficava o grande gato que nos segurava. A imagem dele caindo e não se levantando ficou marcada com a dureza de um acidente que não se espera.

Sinto falta de coisas pequenas que, juntas, eram toda a imensidão dele: o esforço de agarrar a minha mão com as garras macias, o mordiscar carinhoso, o ronron que parecia vir do centro do mundo, o salto que me fazia pular da cama e rir. Sinto falta de sua respiração calma e do jeito como assumia o comando sem alardes. Sinto falta do paizão que estava sempre pronto para um aconchego para quem precisasse.

Cookie foi, para mim, exemplo de como a autoridade pode ser tida com ternura. Era um chefe que sabia cuidar; um gato que ousou amar sem precisar dividir o trono. Sua presença ensinou que proteção, às vezes, é feita de calor e de pequenas mordidas que marcam a afeição. Esses pequenos seres nos aproximam da divindade: nos lembram de que existe algo sagrado no cuidado cotidiano, na paciência e na lealdade.

Ao escrever sobre ele, a lembrança se estende: vejo o corpo negro com reflexos avermelhados correndo ao sol, o pelo brilhando, a barriga grande balançando nos passinhos lentos; vejo-o na cama, esticando as patas; vejo-o com a Biba, em silêncio, fazendo companhia; vejo-o descendo do guarda-roupa e eu fugindo para não ser esmagado. E, no final, lembro sua queda — e a lição que a perda dá, dura e necessária: que amor também é aceitar a ausência e carregar a memória como um calor que não se apaga.

Cookie deixou um espaço que nenhum outro ser soube ocupar do mesmo jeito. Foi o rei que não usou coroa, o pai que nunca teve filhotes, o amigo que se mantinha ao lado. Fica a saudade e a certeza de que, enquanto houver lembrança, ele continua a mandar — agora em outro lugar, quem sabe, onde os telhados não assustem e as quedas não doam. Até sempre, Negão.

Cotton Candy (Branco)


Há nomes que entram na vida como quem anuncia um cheiro doce, leve, impossível de confundir. Cotton Candy — ou simplesmente Branco, como o chamávamos — tinha esse nome e esse cheiro de memória. Nasceu em Curitiba, no dia 10 de outubro de 2000, filho de Nuhtara Dahab, irmão do Negão (Cookie). Veio ao mundo num parto difícil, estava de costas, uma veterinária foi nos orientando para fazer o procedimento: precisou ser puxado de dentro da mãe pela cauda, um gesto áspero de desespero que deixou marcas. Parte do rabo quebrou; depois, com o tempo, cresceu de novo, e o mundo parecia ter devolvido a ele um rabo grande, como se a vida quisesse compensar a violência do nascimento com uma promessa de abundância.

Cotton Candy era, antes de tudo, um sedentário por vocação. Não era feito para correr atrás de borboletas ou escalar alturas com frenesi. Ele tinha o dom — raro e comovente — de saber que a vida inteira cabe num cochilo bem dado. Passava as horas dobrado numa nuvem de pelos, olhos semiabertos, gozando de uma paz que parecia estudada. Se havia disputa na casa, ele não tomava partido; se havia briga, ele escolhia não participar. Havia, nele, uma elegância de quem prefere observar o mundo como um espectador confortável ao invés de um ator barulhento.

Mesmo acomodado, Branco nunca foi problema para ninguém. Não procurava confusão; não era de arrumar encrenca. Isso o tornava, entre tantos irmãos e tantos gatos, uma espécie de neutralidade felina: um ponto de paz no borbulhar cotidiano. Às vezes a gente ria, porque dava para ver que ele gostava mesmo era de ser carinho ambulante — e quando vinham visitas, havia sempre a mesma surpresa: “Mas esse é de pelúcia?”, alguém perguntava, encantado pela pelagem branca, farta e macia. Ele aceitou os afagos como quem aceita a vida: com naturalidade e sem pressa.

Apesar dessa disposição para o sossego, havia um grupo de companhia que acompanhou sua vida nos anos seguintes: quando nos mudamos para Maringá, Branco assumiu um papel que surpreendia pela ternura. Ele cuidou da Nikita — que estava abalada pela perda do irmão Nick — e se aproximou da mãe dela, a Biba (Ayllin). A tríade Branco–Nikita–Biba virou rotina de afeto: eles apareciam juntos, como quem formaliza um pacto de proteção. Nikita buscava em Branco uma segurança de que precisava depois da dor; Branco, por sua vez, parecia entender essa necessidade sem esforço. Brincavam no meu quarto; muitas vezes eu encontrava os dois enrolados, como se Branco concordasse com o mundo desde que a paz fosse preservada.

Branco tinha uma história de corpo que marcava sua presença. Havia uma bola na cabeça — um tumor que se assentava ali, uma mancha de anatomia que o pediatra felino disse não valer a pena remover. Segundo ele, o tumor cresceria novamente se retirado, e se não incomodava o gato e não lhe causava dor, o melhor caminho era deixá-lo. E assim Branco seguiu com sua bola — uma protuberância silenciosa que, de certo modo, o tornou ainda mais singular. Era parte dele, como uma cicatriz que lembra de batalhas vencidas. Nunca reclamou, nunca pareceu sofrer por causa dela; estava lá, uma marca constante que nos lembrava que o corpo pode carregar estranhezas sem perder a serenidade.

A vida de Branco era um ritmo próprio: comer, dormir, receber um afago, dormir de novo. Era um especialista no ofício do descanso. Havia uma paz que se espalhava quando ele se deitava; a casa tinha um ponto de calma quando o Branco repousava. Mas o tempo não perdoa. Aos quase 15 anos, a enfermidade veio como uma sentença gradual e invisível: falência dos órgãos, algo que não se anuncia com barulho até que o corpo, lânguido, começa a falhar. Foi assim que ele nos deixou, em 9 de março de 2015, em Maringá — deixando um vazio de pelagem branca. Era como se um objeto feito de algodão tivesse sido arrancado do móvel onde habitava; a textura do lar mudou.

A morte de Branco chegou sem grande espetáculo; era o término natural de um corpo que vivera com moderação. Mas a ausência que ficou foi profunda. Para quem conviveu com tantos temperamentos felinos — com a autoridade da Nuhtara, a energia do Cookie, a agitação de outros tantos — Branco representava um remanso. Quando ele se foi, a casa perdeu uma cama aquecida, uma almofada ambulante e uma espécie de mediador silencioso. Perdeu também a lembrança de um cuidado simples: a maneira como ele, apenas sendo, aceitava acolher a vulnerabilidade dos outros, como naquelas tardes em que a Nikita lhe buscava proximidade após perdas.

Há memórias que se fixam em pequenos gestos: a forma como ele se espreguiçava ao sol; a forma do corpo ficando na almofada onde dormia; a bola discreta que moldava seu perfil; o rabo que se recuperou do parto difícil, ondulando longo e generoso. E havia, sempre, a impressão de que ele fazia um trabalho íntimo e essencial: ensinar que a presença calma pode ser um cuidado tão forte quanto a coragem dos que ousam enfrentar o mundo. Branco provava que a neutralidade não é frieza; é, sim, escolha de quem quer preservar harmonia.

Quando penso nele, o que vem primeiro não é a forma do rabo ou a protuberância na cabeça, mas a sensação do toque — da pelagem macia entre os dedos e da tranquilidade que ele transmitia. Era como se, naquela carcaça branca e tranquila, o mundo encontrasse um pequeno remanso. E é esse remanso que sinto falta: o calor imóvel que acalmava os passos da casa, a fidelidade sem exigência, a presença que dizia mais em silêncio do que em miados.

Cotton Candy viveu quase quinze anos. A sua história — do obstáculo no nascimento até a calmaria final — é uma lição sobre modos de estar no mundo. Não era um gato de grandes feitos; era, porém, um soberano dentro de suas limitações. Deixou-nos a prova de que existir de forma suave pode ser, por si só, um gesto de coragem. E quando ecoa a lembrança dele em nossa casa, o que fica é um espaço mais tranquilo, como se a ausência dele tivesse trazido a lembrança de um abraço: de pelagem, de calor e de uma paciência que só alguns seres pequenos carregam consigo.

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Lad

 

Em uma noite quente de janeiro de 1996, São Paulo pulsava com sua energia inconfundível. Nós, recém-casados, estávamos começando nossa vida juntos, em um apartamento simples perto do Bexiga. Foram tempos de descobertas, de montar um lar, de aprender a dividir o espaço, os sonhos e, claro, o amor pelos bichos. Naquele período, ganhamos uma gata persa, a Kika, um presente que trouxe ainda mais vida para o nosso pequeno mundo.

Kika chegou grávida, e lembro que foi no mesmo dia em que fomos assistir ao show do Robert Plant e Jimmy Page no Pacaembu. Kika deu à luz a sete gatinhos. Sete pequenas vidas, cada uma com sua particularidade, espalhando-se pelo apartamento e enchendo cada canto com miados e travessuras. Mas foi um deles que roubou meu coração desde o momento em que o peguei no colo — um azulzinho acinzentado, de pelos macios como nuvens e olhar curioso (conhecido por Persa Azul Britânico). Chamamos ele de Lad, e foi como se uma conexão imediata tivesse sido estabelecida. Ele era meu. Meu gato, meu amigo.

Lad era diferente dos irmãos. Enquanto os outros eram arteiros, incansáveis em sua busca por confusão, Lad era tranquilo, quase introspectivo. Doamos os outros filhotes, mas não havia dúvida de que Lad ficaria conosco. Ele cresceu rápido, transformando-se em um gato enorme, de quase seis quilos, mas sem nunca perder aquele ar doce e sereno que conquistava a todos. Todas as noites, sem exceção, ele era embalado em meus braços até dormir. Era um ritual nosso, algo que se tornou tão natural quanto respirar. E, claro, ele ganhou muitos apelidos ao longo do tempo, mas o favorito era "Barriga de pudim". Apertar aquela barriguinha macia era irresistível, e Lad parecia gostar da atenção, ronronando baixinho como se concordasse com o carinho.

Quando nos mudamos para Taboão da Serra, Lad assumiu um novo papel. Ao lado de sua mãe, Kika, tornou-se o líder do grupo. Ele tinha uma presença marcante, mas nunca precisou ser agressivo para se impor. Era um líder natural, respeitado pelos outros gatos e até por nós. E, como todo bom líder, era protetor. Lembro de uma ocasião em que estávamos no quintal da frente com sua filha, Cerydween, quando um vizinho apareceu com um gato. Antes que percebêssemos, Lad veio como um raio de dentro de casa, posicionando-se entre a filha e o visitante. Não precisou de um único arranhão — apenas sua postura foi suficiente para deixar claro que ninguém mexeria com sua família. Esse era Lad: forte, protetor e, ao mesmo tempo, pacífico.

Mas nem sempre a paz reinava. O Floquinho, um gato angorá, queria a todo custo tomar a liderança de Lad. Lad, em sua tranquilidade, evitava confrontos, preferindo ignorar as provocações. Até que, certo dia, Floquinho o encurralou no andar de baixo. Eu estava lá e vi o que aconteceu: Lad, que sempre evitava brigas, se transformou. Com um só movimento, deu um chega pra lá tão firme no adversário que nunca mais ousou desafiá-lo. Era como se Lad dissesse: "Eu sou tranquilo, mas não abuse."

Lad também tinha uma amizade especial com Maya, nossa cachorra pastora/akita. Eles costumavam passar horas juntos no quintal de baixo, uma dupla improvável, mas inseparável. E quando fomos para Curitiba, a família maior, com novos gatos, trouxe ainda mais dinâmica para a vida de Lad. Ele gostava especialmente de Gwyddion, um gato sapeca com quem adorava brincar no quintal. Os dois deixavam Maya sem ação, correndo de um lado para o outro, como se estivessem tramando alguma travessura.

Com o passar do tempo, Lad começou a mudar. A castração o tornou mais preguiçoso. Já não era mais aquele gato ativo e brincalhão de antes. Mas, para mim, ele continuava sendo o meu gatinho do coração. Mesmo com seus quase seis quilos, eu ainda o segurava nos braços todas as noites até que ele dormisse. Era uma rotina que eu jamais abandonaria, mesmo quando meus braços começavam a protestar pelo peso.

Em 2001, nossa jornada nos levou a Ubiratã. Lad já não era mais o mesmo. Ele foi diagnosticado com urolitíase felina, uma condição que o deixava cada vez mais frágil. Passava boa parte do tempo dormindo, e sua energia parecia ter se esvaído. Ainda assim, era impossível não vê-lo como o mesmo Lad de sempre — meu companheiro, meu amigo fiel. Até que, na tarde de 9 de novembro de 2002, o encontrei morto na sala. Ele tinha quase sete anos. Sete anos de uma vida que marcou a minha em profundidade.

A dor da perda foi avassaladora. Por uma semana, chorei como nunca havia chorado antes. Era como se uma parte de mim tivesse ido com ele. Lad não era apenas um gato; ele era uma presença constante, uma fonte de conforto, de alegria, de amor incondicional. A ausência dele deixou um vazio que parecia impossível de preencher.

Hoje, quando penso em Lad, é com saudade, mas também com gratidão. Ele foi muito mais do que um animal de estimação. Foi um amigo, um companheiro, uma prova viva de que o amor pode se manifestar nas formas mais simples e puras. E, sempre que fecho os olhos, consigo vê-lo novamente, com sua "barriga de pudim", ronronando baixinho nos meus braços, como se o tempo nunca tivesse passado.

domingo, 9 de novembro de 2025

Lady

 

Lady nasceu em uma manhã de inverno, em 28 de junho de 2003, numa cidadezinha chamada Ubiratã. Filha da Baby e do Cotton Candy, ela veio ao mundo carregando o peso de um nome que parecia predestinado: Lady. E Lady ela foi, em tudo. No porte, no olhar altivo, no jeito elegante de se mover pela casa. Era como se soubesse que sua presença exigia respeito, mesmo que fosse apenas uma pequena bola de pelos macios e tricolor. Seus pais a criaram com todo o amor que um lar pode oferecer, e talvez por isso ela tenha crescido com aquela aura de realeza serena.

No início, confesso que não fui muito com a cara dela. Achava-a esnobe, um tanto distante, como se estivesse sempre acima de nós, meros mortais. Mas não dá para negar que ela era tranquila. Lady nunca arrumou confusão, nunca perdeu a compostura. Ela entendia seu lugar na hierarquia felina e respeitava a liderança da Nuhtara, a chefe. No entanto, onde Lady realmente mostrava sua lealdade era na relação com sua irmã Polly. As duas eram inseparáveis, como se compartilhassem um segredo que ninguém mais pudesse entender.

Minha esposa, por outro lado, era o centro do mundo de Lady. Elas tinham uma conexão única, quase mágica. Lady parecia feita para ela, sempre grudada, sempre presente. A casa era o reino de Lady, mas minha esposa era a sua rainha. Quando nos mudamos para Maringá, a dinâmica mudou um pouco. Minha esposa yeve que se mudar a trabalho, e foi então que Lady e eu começamos a nos aproximar. Foi um processo lento, discreto, como se ela me testasse, avaliando se eu era digno da sua confiança. E aos poucos, fui descobrindo nela algo além da postura altiva: havia uma doçura imensa, escondida por trás do olhar aristocrático.

Em 2015, veio o primeiro golpe. Lady teve um AVC. Foi desesperador vê-la tão vulnerável, tão diferente da gata elegante e autossuficiente que sempre foi. Sua cabeça inclinada para o lado era o reflexo físico de sua luta interna. Ela não conseguia se alimentar sozinha, não conseguia andar sem ajuda. Foi aí que a nossa relação mudou de vez. Passei a ajudá-la em tudo: a comer, a ir ao banheiro, a se locomover pela casa. E foi nesse cuidado diário, nessa convivência intensa, que meu coração se abriu por completo para ela. Lady, antes a gata da minha esposa, tornou-se também minha companheira.

Mas a vida é cruel, e o tempo nem sempre nos dá as segundas chances que desejamos. Em 2 de julho de 2015, poucos dias após completar 12 anos, Lady teve outro AVC. Desta vez, seu coraçãozinho não resistiu. Foi como se um machado tivesse partido o meu ao meio. A dor foi indescritível, uma espécie de vazio que parecia não ter fim. Lady havia se transformado em mais do que uma gata para mim; ela era família, um pedaço essencial da nossa história.

Hoje, quando penso em Lady, não é apenas com tristeza. É com gratidão. Gratidão por ter tido a chance de compartilhar a vida com ela, por ter aprendido o que é amor e cuidado em momentos de fragilidade. Lady foi, de fato, uma lady em tudo: na maneira como viveu, na serenidade com que enfrentou as dificuldades, e até na forma digna como partiu. Ela deixou um espaço que nunca será preenchido, mas também deixou memórias que nunca se apagarão.

Lady, a gata que nasceu para ser rainha, agora reina em um lugar especial, onde o amor é eterno e a dor da saudade é apenas o reflexo de tudo o que vivemos juntos.

As Sombras da Solidão

  ( a crônica abaixo, infelizmente, são fatos comuns hoje em dia, alguns elementos a mais fazem parte desta história, mas boa parte deles fa...